Derrota no plebiscito atinge governo Boric

06 de setembro de 2022

Por Ana Beatriz Aquino, Caio Vitor Spaulonci, Geovanna Mirian Raimundo, Giovanna Martins de Antonio e Melissa Souza Jorge (Foto: Presidência do Chile)

Apesar do rechaço, a constituinte chilena foi histórica da sua formação ao texto, com tópicos como direitos reprodutivos e proteção à natureza, questões chave neste processo que precisarão ser tratadas por novos acordos

 

O Chile rejeitou em plebiscito a proposta de nova Constituição, com uma diferença acachapante: 62,55% a 37,45%, no último dia 4 de setembro. O processo de luta pela substituição da atual Carta Magna iniciou-se nas maciças manifestações populares ocorridas entre outubro de 2019 e março de 2020. 

 

O que era inicialmente um conjunto de protestos pela redução das passagens de metrô, ampliou-se por demandas pela melhoria de serviços públicos e uma radical mudança institucional. Em plebiscito realizado em outubro de 2020 78% dos votantes apoiaram a abertura do processo de formulação de um novo texto constitucional que revogaria a autoritária constituição de 1980 criada sob a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1989). Para muitos analistas latinoamericanos, a nova Carta representaria a esperança de que o berço do neoliberalismo na América Latina fosse também sua cova. Na noite de domingo a esperança que parecia se espalhar pela esquerda do Chile e dos países vizinhos se dissipou um pouco com a reprovação eleitoral do novo texto, em uma eleição que contou com o voto obrigatório – após 10 anos da retirada da obrigatoriedade – e com um comparecimento às urnas de mais de 85% das pessoas aptas a votar.

 

Apesar do rechaço, a constituinte chilena sem dúvidas foi histórica desde o processo formação da convenção, que contou com paridade de gênero pela primeira vez no mundo e vagas destinadas aos povos originários, até a formulação do texto que incluiu tópicos como direitos reprodutivos e artigos extremamente voltados à proteção e manutenção da natureza, reafirmando a posição de liderança internacional em matéria ambiental que o Chile tem buscado adotar.

 

No artigo “100 dias de governo Boric” abordamos as dificuldades enfrentadas pelo novo presidente do país no início de sua gestão, e analisamos os impactos que a aprovação ou rejeição da nova Constituição teriam em seu governo, realizando uma breve recapitulação sobre o processo. A seguir, apresentaremos uma análise dos resultados eleitorais do dia 4 de Setembro, bem como as principais mudanças presentes na proposta rejeitada.

 

O longo caminho até o plebiscito

 

Em 25 de Outubro de 2020, 78,27% dos chilenos votaram pelo início de um processo constituinte no plebiscito de entrada, que registrou uma participação de 50,90% daqueles aptos a votar. Contudo, no plebiscito de saída os resultados foram drasticamente distintos, tendo em vista que 61,86% da população decidiu pelo rechazo, em um pleito no qual o sufrágio foi obrigatório. Com isso, 85,82% dos eleitores chilenos compareceram às urnas. Diante da diferença que separa esses resultados, é preciso analisar os fatores que modificaram tão profundamente a opinião pública sobre a proposta de nova Constituição.

 

Primeiramente, é importante analisar a articulação das forças políticas chilenas durante o processo. O estallido social – os protestos de dois anos atrás – e os acordos para a elaboração de uma nova Constituição foram duros golpes na gestão do ex-presidente de direita Sebastian Piñera. O conservadorismo acabou por conquistar apenas 25%  das cadeiras nas eleições para os convencionais – não atingindo a meta de ⅓ das cadeiras para exercer poder de veto. Os candidatos de esquerda, centroesquerda, independentes e representantes de povos originários alcançaram cerca de 75% das 155 cadeiras em disputa. Esse impulso progressista possibilitou a eleição do atual presidente, mas também gerou uma reação da extrema-direita chilena, como evidenciado pela alta votação recebida pelo candidato à presidência José Antonio Kast, admirador do ditador Pinochet. 

 

A força da direita

 

As expectativas para com o processo constitucional eram altas entre os setores progressistas, mas inspiravam preocupação. Os pesquisadores Jennifer M. Piscopo (Occidental College) e Peter M. Siavelis (Wake Forest University) afirmaram em maio ao Financial Times que “o momento atual mostra que, ao mesmo tempo que utilizar a redação da constituição para dar um reboot à democracia gera novas possibilidades políticas, pode também estimular oponentes poderosos”. Segundo eles, sses grupos que estavam afastados do processo constituinte internamente, tendo em vista sua baixa representação, buscaram combater a nova Constituição externamente, através de três estratégias principais: 1) Divulgação de fake newsDe acordo com uma pesquisa organizada pela ONG Derechos Digitales e o orgão de pesquisa Datavoz, 58% dos chilenos havia sido exposto a alguma notícia falsa sobre a convenção. Entre as mais absurdas estavam as ideias de que o aborto seria permitido até o fim da gestação; de que o hino, a bandeira e o nome do país seriam modificados; e de que ninguem teria direito a propriedade privada. 2) A deslegitimação do processo constituinte e o ataque as instituições: Por não possuírem o poder para impor suas demandas na convenção, alguns convencionais de direita buscaram convencer a população da incompetência da Convenção, inclusive atrapalhando os trabalhos ao proporem artigos que os próprios rejeitaram posteriormente nas votações. 3) Para Piscopo e Siavelis também ocorreu um processo de demonização da oposição, confirmada por investigações realizadas por pesquisadores da PUC de Valparaíso, que detectaram quase oito mil contas dedicadas a disseminar “ataques coordenados à Convenção e a sua presidente” no Twitter

 

Dessa forma, a proposta de nova Constituição começou a ser associada ao “radicalismo” e ao “autoritarismo”, nas redes sociais, e a ideia de que “o Chile se tornaria uma nova Venezuela” era amplamente difundida. O sucesso da campanha pelo rechazo – que teve três vezes mais financiamento que a pelo apruebo – esteve ancorado na recusa ao que denominaram de extremismo por parte da proposta – na recusa ao texto apresentado – e não a ideia de nova Constituição, de modo que a propaganda buscou associar a rejeição a campanha do “No”, de 1988, responsável pela derrota de Pinochet e propor uma “terceira via” – isto é, um novo processo constituinte.

 

Ademais, a reforma constitucional de 24 de dezembro de 2019 – que viabilizou o início do processo – também impôs alguns obstáculos chave para o trabalho do grupo, como o prazo máximo de 12 meses para os trabalhos da Convenção Constitucional, que teve que realizar todo o processo desde o zero. Assim, mecanismos de participação popular previstos pelo regulamento como o “Plebiscito Intermediário Dirimente” (que submeteria à opinião popular as decisões mais polarizadoras, isto é, aquelas que alcançaram a marca de 3/5 mas não os 2/3) e poderiam contribuir com a opinião pública sobre a legitimidade do processo não foram realizados. 

 

O voto obrigatório

 

Outro fator importante para a vitória do rechazo foi a obrigatoriedade do sufrágio no plebiscito de saída – após 10 anos de voto facultativo. Ao realizarmos uma comparação entre as eleições do dia 4 de Setembro com o segundo turno das eleições presidenciais (na qual o voto não foi obrigatório) podemos observar que o número de votos obtidos pelo Apruebo (4.860.093) foi muito próximo da votação de Boric no segundo turno (4.620.671). Entretanto, com uma participação 30% maior, os votos daqueles que se abstiveram nos plebiscitos de entrada e no segundo turno se tornaram essenciais para um êxito eleitoral, e a campanha pelo Apruebo não conseguiu conquistar esse setor. Para Pedro Abramovay (Diretor da Open Society Foundations para a América Latina e Caribe) a Convenção Constitucional eleita “era mais a cara das ruas do que a cara do Chile”.

 

Mas, também é necessário destacar as falhas da Convenção Constitucional durante seus trabalhos. Antes mesmo das eleições para os convencionais, um estudo do Observatorio Nueva Constitución mostrou que 77% dos candidatos não possuía experiência política. Ademais, os resultados exitosos dos independentes no pleito traduzem um desejo da população chilena de que outsiders estivessem representados nesse processo. Esse fator, juntamente com a ampla maioria progressista entre os convencionais, dificultaram as negociações com setores como a direita e até mesmo a centro-esquerda – que teve sua força no processo constitucional subestimada pelo baixo número de assentos e acabou se posicionando favorável ao rechazo no plebiscito de saída. Contudo, isso não significa que esses grupos não realizaram concessões, uma vez que pautas importantes para a direita chilena, como a questão da responsabilidade fiscal, foram incluídas no documento.

 

Além disso, alguns atores envolvidos no processo de redação da nova Constituição acabaram  acarretando em uma deterioração da imagem da Convenção diante da população chilena. Um dos casos mais emblemáticos é o de Rodrigo Rojas Vade, que ganhou destaque durante o estallido social ao defender pautas relacionadas ao sistema de saúde chileno – a partir da perspectiva de alguém que sofria de câncer – e foi eleito pela Convenção para uma das vice-presidências. Entretanto, uma investigação publicada apenas dois meses após o início dos trabalhos revelou que Vade não tinha câncer, fazendo com que o ex vice-presidente assumisse as acusações e renunciasse ao cargo. Também houveram casos de desrespeito ao próprio processo constitucional, como as polêmicas em relação ao comportamento de convencionais como Nicolás Núñez, que votou a distância enquanto se banhava e realizou “discursos musicais”. Para o ex-convencional Marcos Barraza (Partido Comunista) a “falta de solenidade e de gostos pessoais de alguns constituintes” foram determinantes para o triunfo do rechazo. Ademais, uma apresentação polêmica durante um ato de campanha do Apruebo em Valparaíso – que expôs menores a cenas de nudez apenas uma semana antes do plebiscito, também pode ter gerado um impacto negativo na votação.

 

A polêmica da plurinacionalidade

 

A pauta da proposta de nova Constituição que gerou um maior incômodo na população chilena é a plurinacionalidade. Para Pamela Figueroa (Universidade de Santiago de Chile) “os grupos pelo rechazo associaram a plurinacionalidade à divisão do país”. Assim, desde o início do processo constitucional havia uma defesa de que a plurinacionalidade geraria privilégios para os povos originários e alteraria o caráter unitário do Estado chileno e, propostas como um sistema jurídico indigena agravaram essa sensação. Apesar de ser extremamente importante para garantir os direitos dos povos originários chilenos e ter sido a principal demanda desse grupo na Convenção, a proposta de plurinacionalidade encontrou pouco respaldo em uma população na qual apenas 12% se identificam como indígenas – um contexto radicalmente diferente do boliviano, que conseguiu incluir o tema em sua constituição em 2009. No país andino, 62% da população se identifica como indígena.

 

Para The Economist, a proposta de nova Constituição é utópica, “fiscalmente irresponsável e lista de desejos da esquerda”, fazendo com que a publicação recomende a rejeição e posterior reforma do texto vigente (que já foi reformada por 59 leis e ainda assim não conseguiu atender às demandas populares). Segundo a revista, o gasto estatal necessário para garantir os direitos sociais pautados na Constituição seriam danosos à economia chilena. Há uma crítica à nova Constituição pelas pautas populares mobilizadas desde o estallido social – as reformas no sistema educacional, de saúde, previdenciário, o fim da privatização da água – e não as pautas que polarizaram o debate interno nos meses finais – como a plurinacionalidade e a questão do aborto. Já o Washington Post argumenta que o texto deveria ser reescrito, iniciando sua argumentação com destaque para a seção “Estatuto dos Minerais”, expondo como o lítio é essencial para os Estados Unidos e como a aprovação do texto poderia obstaculizar esses interesses. Assim, também é imperativo considerar a influência de atores externos na formação da opinião pública sobre a Constituição.

 

Quanto às “ambições utópicas” do texto chileno, podemos traçar paralelos com as próprias críticas que a Constituição Federal de 1988 recebeu. Em uma reportagem da Rádio Câmara sobre os 15 anos da Carta Magna brasileira, Walder de Góes (jornalista e professor da UNB, falecido em 2012) afirmou que:Uma Constituição tem que ter também uma dimensão de sonho, uma dimensão de utopia. Não apenas o que somos, mas também o que queremos ser. (…) É preciso o sonho, porque o sonho é o projeto, o sonho é o caminho possível e a Constituição tem que ter essa dimensão”.

 

Por fim, é importante destacar o impacto que a gestão de Boric teve no processo: A pesquisa CADEM, divulgada no dia 10 de Agosto, mostra que a opção pelo rechazo supera a do apruebo em abril (46% versus 40%) – mesmo mês em que a desaprovação do novo governo supera a aprovação (50% versus 40%). Antes de ser eleito presidente, Gabriel Boric era deputado e foi um dos assinantes do “Acordo pela Paz Social e Nova Constituição”, saída institucional acordada entre as distintas forças políticas diante dos protestos que tomavam as ruas do Chile. O acordo teve ampla aceitação popular, frente aos desejos da população por uma nova constituição – confirmados no plebiscito de entrada de 2020 – mas também gerou críticas por parte de alguns setores progressistas, que acreditavam que a ênfase na paz social acarretaria na descontinuidade das manifestações que poderiam derrubar o governo de Sebastián Piñera. Durante as eleições para os convencionais, a coalizão política do partido de Boric, a Apruebo Dignidad, obteve um importante sucesso, que foi repetido nas eleições presidenciais. Assim, a participação ativa de Boric no processo constituinte fez com que sua imagem estivesse fortemente associada ao processo, de modo que as avaliações negativas sobre sua gestão podem ter gerado impactos na opinião popular sobre o processo. 

 

Principais propostas do projeto rejeitado:

 

Sistema Político

 

Uma das grandes mudanças da proposta é a paridade de gênero, prevista dentro do princípio 2 do artigo 1, ao definir o Chile como uma “democracia inclusiva e paritária”, e no artigo 181, que coloca a obrigatoriedade de que os cargos nos órgãos e empresas públicas sejam ocupados por um número igual de homens e de mulheres. O documento também propõe que os povos indígenas tenham representação proporcional à sua população no país, cerca de 13%, com cadeiras garantidas na Câmara dos Deputados e Deputadas.

 

Outro ponto a ser ressaltado é a participação e aumento da autonomia regional, através da extinção do Senado e criação da Câmara das Regiões. Com no mínimo 3 representantes de cada uma das 16 regiões do país, a nova câmara tem por foco deliberar sobre as leis de interesse e impacto regional, listadas no artigo 268, como estatutos regionais, leis de proteção ambiental, entre outras.

 

No mais, no Poder Executivo, a idade mínima para se candidatar ao cargo da presidência passa de 35 para 30 anos, e fica permitida a reeleição consecutiva até o número de 2 mandatos, não permitida na Constituição de 1980.

 

Direitos dos povos indígenas

 

Os direitos dos povos indígenas ganham força quando a nova Constituição define o Chile como um Estado Plurinacional, reconhecendo os direitos individuais e coletivos e a autonomia dos povos originários, nomeando-os inclusive, em seu artigo 5: dentre outros, os Mapuche, Aymara, Rapanui, Lickanantay, Quechua, Colla, Diaguita, Chango, Kawésqar, Yagán e Selk’nam. São direitos dos povos indígenas e nações originárias, elencados a seguir. 

 

A autonomia e autogoverno: no reconhecimento de seus símbolos e emblemas (art. 13);  no desenvolvimento de estabelecimento e instituições próprias compatíveis com suas culturas, desde que em conformidade com os princípios do projeto de educação nacional e os marcos do Sistema Nacional de Educação (art. 36).

 

O acesso e proteção às suas terras e seus recursos:  na utilização e preservação do território, incluindo os corpos de água situados nas terras indígenas, as quais o Estado deverá trabalhar para manter sua integridade e abastecimento (arts. 58 e 79) e na preservação de seus modos de subsistência, como a pesca e agricultura indígena (art. 54). 

 

O reconhecimento de sua identidade, cultura e tradições:  no direito de ter indicado em documentos oficiais, além da nacionalidade chilena, o pertencimento aos povos e nações indígenas (art. 114); no respeito e proteção das línguas indígenas (art. 12); suas práticas de saúde e tradições medicinais (art. 44); e no reconhecimento pelo Estado do patrimônio cultural indígena, contando com mecanismos para a sua recuperação, revitalização e fortalecimento, incluindo a repatriação de seus objetos culturais e humanos (art. 102).

 

A participação política, econômica e social do Estado do Chile: na representação nos órgãos colegiados de participação popular (de todos os três níveis regionais) através de número de cadeiras reservadas relativas à sua população (art. 162); e na qual os povos indígenas devem ser consultados antes da adoção de qualquer medida administrativa ou legislativa que os afetem (art. 66). 

Por fim, o acesso a prerrogativas judiciais baseadas no reconhecimento de suas culturas: no reconhecimento de um sistema jurídico indígena e na adoção de perspectivas interculturais para a resolução de conflitos quando da pessoa indígena, ambos devendo estar em conformidade com o Sistema Nacional de Justiça, os Direitos Fundamentais dispostos na Constituição, e os tratados e instrumentos de direitos humanos internacionais em que o Chile faz parte (arts. 309 e 322). 

 

Previdência Social, Saúde e Educação

 

A proposta da nova Constituição Chilena tinha como importante característica a garantia pelo governo de direitos sociais fundamentais à sua população, dentre eles o direito à previdência social, saúde e educação.  A proposta estabelece que todos devem ter acesso à previdência social e a materialização desse direito ocorreria através da criação de um Sistema de Previdência Social Pública que se encarregará de gerar ações de proteção social àqueles grupos da sociedade que a necessitarem. Dentre esses grupos estão os casos de: doença, velhice; invalidez; sobrevivência; maternidade e paternidade; desemprego; acidentes de trabalho; doenças ocupacionais e outros direitos previstos pela lei. O sistema também estaria encarregado de assegurar esse direito àqueles que se dedicam ao trabalho doméstico e de cuidado. Esse sistema se financiaria pela política de previdência social do Estado, tendo seu orçamento, por sua vez, através da receita geral da nação e de contribuições obrigatórias (tributos) de trabalhadores, empregados e empregadores chilenos. 

 

O novo texto também estabelece que toda pessoa tem direito à saúde e ao bem-estar físico e mental; e o Estado deverá instituir um Sistema Nacional de Saúde Pública, de acesso a todas as pessoas e que seria integrado por instituições públicas e privadas. Esse sistema de saúde seria responsável pela promoção da vida saudável; prevenir e diagnosticar doenças; proporcionar tratamentos oportunos, acompanhar e reabilitar a população para as doenças que os exijam. O texto constitucional chileno também é o primeiro que inclui e define como um dos elementos centrais a promoção da saúde mental na sociedade, ressaltando a criação de políticas públicas de saúde com este tema. 

 

Além disso, ele também define o direito de proteção a todas as pessoas que exercem o trabalho de cuidado e as que necessitam de cuidados especiais. Com isso, o Estado criaria um Sistema Integrado de Cuidados que desenvolveria e implantaria políticas de atendimento público e programas de assistência estatal a esse grupo necessitado. Essas ações se orientam a lactantes; crianças e adolescentes; idosos; pessoas em situações de incapacidade ou de dependência e pessoas com doenças graves ou doenças terminais. 

 

A proposta estabelece que a educação é um processo de treinamento e aprendizagem indispensável para a vida humana, e que todas as pessoas devem ter acesso à ela sem distinção alguma. Ela define a criação de um Sistema Nacional de Educação, que seria composto pelas instituições de ensino infantil, fundamental, médio e superior, criadas ou reconhecidas pelo Estado. Na prática, o direito universal à educação em todos seus níveis seria estabelecido mediante a criação de um Sistema de Educação Pública, que deve ser secular e gratuito. Também estabelece que a educação básica, fundamental e ensino médio serão obrigatórios e que o sistema de ensino superior será gratuito em instituições públicas e privadas determinadas por lei. O texto define que os pais e tutores terão o direito de escolher o tipo de educação que desejam para os seus filhos, respeitando seus interesses e a autonomia progressiva das crianças e adolescentes. 

 

Em relação aos profissionais da educação, o texto define que o Estado deve assegurar o desenvolvimento profissional adequado aos trabalhadores de instituições estatais em todos os níveis de ensino. Para isso, serão criados mecanismos a fim de garantir a estabilidade dos empregos, boas condições de trabalho e treinamento dos profissionais ao longo de seu desenvolvimento profissional. 

 

A nova Constituição também define a criação de um Sistema Nacional de Educação Superior, formado por Universidades; Institutos Profissionalizantes; Centros de Formação Técnica; escolas de formação e treinamento das Forças Armadas e de Segurança; e Academias criadas ou reconhecidas pelo Estado. O acesso ao ensino superior será regidos pelos princípios de igualdade e inclusão, com atenção especial aos grupos historicamente excluídos, eliminando qualquer tipo de descriminação arbitrária. Além disso, é garantido a liberdade acadêmica em todos os estabelecimentos. 

 

Polícia e Forças Armadas

 

À respeito das Forças Armadas e das Forças de Ordem e Segurança Pública, a proposta da nova Constituição estabelece a divisão entre os poderes das Forças Armadas e das polícias. O primeiro em questão é responsável pelo Exército, Marinha e Força Aérea Chilenos  e têm como objetivo a proteção da soberania, independência e integridade territorial do país frente a agressões de caráter externo. A polícia, por sua vez, abrange as instituições não militares, profissionalizantes, hierárquicas, disciplinadas e não deliberativas do país, dentre elas os Carabineiros chilenos – força militar autônoma –  e as polícias de investigações. Seus objetivos são garantir a segurança pública e a segurança de todos os habitantes do país. 

 

Direitos de gênero e sexualidade

 

Mesmo antes da população chilena decidir se aprovava ou rejeitava a elaboração de uma nova Constituição em Outubro de 2020, a paridade de gênero já havia sido garantida pelo Congresso em Março daquele ano, dessa forma, os 78,27% dos eleitores que votaram por uma nova Carta Magna já sabiam que o documento seria redigido por uma convenção paritária. A questão da paridade de gênero teve protagonismo durante todo o processo: possibilitou uma votação recorde para as candidatas durante as eleições, garantiu uma representação igualitária das mulheres na Convenção Constitucional, e também foi utilizada constantemente durante os trabalhos dos convencionais para a formação das comissões e eleições internas. Assim, esse princípio – que norteou os trabalhos da constituinte – não poderia ter ficado de fora da proposta de Constituição: Já no primeiro artigo, a democracia chilena é descrita como “paritária e inclusiva”, de modo que a paridade é garantida em todos os órgãos do Estado, inclusive nos sistemas eleitorais (também ficou garantida a paridade nas candidaturas) e judiciário, sendo objetivo destes promover uma perspectiva de gênero em suas ações.

 

Ademais, o texto também tratava do direito a uma vida livre de violência de gênero para mulheres, meninas, “diversidades e dissidências sexogenéricas” (nos ámbitos público e privado, cometidas por particulares, instituições ou até mesmo o Estado), bem como dos direitos sexuais e reprodutivos (decisões sobre o próprio corpo, exercício da sexualidade, da reprodução, do prazer e da anticoncepção, a partir do acesso à informação, educação, saúde e demais serviços necessários para garantir tais direitos) – temas que não estavam presentes na Constituição de 1980. Assim, a proposta garante o direito ao aborto, bem como o direito a identidade, além de pautar questões importantes como a violência obstetrica, a violencia política de gênero, e as atividades de cuidado. Contudo, a maneira vaga como o direito à interrupção voluntária da gravidez foi colocada no texto, não estabelecendo até que ponto da gestação o procedimento poderia ser realizado, acabou alimentando as divulgações de notícias falsas sobre a nova Constituição.

 

Meio ambiente

 

As propostas para valorização do meio ambiente ganharam muita visibilidade já que a Mega Seca Central do Chile assola à população há mais de uma década. Essa questão evidencia as afirmações do relatório publicado em fevereiro deste ano pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, em que expõe a vulnerabilidade do país frente às mudanças climáticas, trazendo à tona que o Estado sentirá cada vez mais esses efeitos. 

 

Assim, o texto do projeto referencia o termo “ecológico” diversas vezes, além de trazer conceitos de crise climática e direitos da natureza em suas propostas. O capítulo Meio Ambiente e Natureza, demonstra a declaração de transformar o Chile em um Estado ecológico. Segundo o Observatório Ambiental Constitucional, foram descritas 50 normas de proteção ambiental, o que demonstra preocupação ambiental existente. 

No país existem espaços chamados de “zonas de sacrifício”, onde são destinadas atividades poluentes, Quintero-Puchuncaví, Coronel, Huasco, Mejillones e Tocopilla representam esses locais. Entre as propostas, a ideia de justiça ambiental se sobressaia e um de seus objetivos era extinguir a existência dessas zonas. 

 

O texto considera como direitos humanos o direito à água (que é um recurso privado no país), a alimentação, a justiça intergeracional, a qualidade de vida, ar puro e direito à cidade e ao território. Além da criação da Defensoria da Natureza, de Conselhos de Bacias Hidrográficas e Tribunais Ambientais nas 16 regiões do país para a garantia de direitos aos povos indígenas. O que demonstra a assimilação de ações climáticas justas e direitos da natureza. 

 

Rechazo à proposta de Constituição: fim do processo constituinte?

 

Como apontamos no artigo 100 dias de governo Boric, o rechazo à nova Constituição agravaria ainda mais a situação do atual governo, que já iniciou um processo de alteração da equipe ministerial após o plebiscito. Especialistas apontam “um segundo turno” do governo do esquerdista chileno, no qual o presidente buscará estabelecer um novo acordo que possibilite a continuidade do processo constitucional, tendo em vista que o “Acordo pela Paz Social e Nova Constituição” não garantiu a elaboração de outro documento caso o rechazo ganhasse. Contudo, Boric argumenta que o desejo inicial da população por uma nova Carta Magna, manifestado no plebiscito de 2020, deve manter o processo constitucional ativo.

 

Michelle Bachelet (ex-presidenta e ex- alta comissária de direitos humanos da ONU) afirmou que “As exigências do povo chileno não serão satisfeitas se o Rechazo vencer”, ressaltando como as inquietações que levaram a população às ruas durante o governo Piñera permanecem vivas e devem ser atendidas, uma vez que o acordo por uma nova Constituição foi conquistado a partir de um processo de fortalecimento dos movimentos sociais – que foi iniciado nos anos 2000 e atingiu o seu ápice durante o Estallido – e da resistência à violência: De acordo com dados da Humans Rights Watch, durante os protestos de 2019-2020 foram registrados mais de 15 mil detenções (que contaram com práticas de violência de gênero, como obrigar mulheres e meninas a se agacharem nuas), 11 mil feridos (entre eles, vários sofreram lesões oculares) e 26 mortes. Além disso, o Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH) também registrou 1083 denuncias de tortura e tratos crueis, e 206 denuncias de violência sexual.

 

As lideranças políticas por trás do Rechazo, como o Chile Vamos (coalizão do ex-presidente Piñera) se comprometeram com a promessa feita durante a campanha de realizar “uma nova e boa Constituição”. Os setores da centro-esquerda que apoiaram a rejeição também assumiram um compromisso com a continuidade do processo.

 

Caso o movimento por uma nova Constituição consiga se renovar, é importante analisar como as questões chave para o processo anterior serão tratadas nos novos acordos. Afinal, experiências como a paridade de gênero, a reserva de vagas para povos originários e a possibilidade de independentes se candidatarem serão preservadas? – essas são apenas algumas das dúvidas,  que são inúmeras – enquanto o  futuro chileno, no momento, é incerto.

 

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