04 de outubro de 2022
Por Flávio Rocha, Anna Bezerra, Diego Jatobá, Felipe Lelli. João de Oliveira, Julia Lamberti, Lais Surcin, Larissa Gradinar, Lucas Ayarroio, Roberto Silva, Tarcízio Melo e Vinícius Bueno (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
As relações entre civis e militares e a partidarização das Forças Armadas indicam que militares ganharam força e oportunidade de se envolverem em governos e partidos, quando o comprometimento das Forças Armadas deveria ser com a segurança nacional
Independente de quem ganhar as eleições presidenciais, o papel das Forças Armadas no próximo governo já suscita reflexões no meio acadêmico. O Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (INEST) realizou debate em seu canal do Youtube sobre as perspectivas do próximo governo acerca dos militares. O encontro contou com a presença do Almirante Antônio Ruy de Almeida, General Francisco Mamede de Brito Filho e o Professor Eurico de Lima Figueiredo.
As discussões destacaram possíveis atitudes do próximo Presidente. Segundo o General Brito, um ministro de perfil civil na Defesa facilitaria o trânsito entre os militares e os políticos, especialmente no Congresso Nacional, além de um ministro civil poderia servir de “ponto equidistante” entre os interesses militares e políticos. O Almirante Antônio Ruy ressaltou a importância dos civis conduzirem as políticas públicas e estratégias nacionais em temas de defesa, e os militares entrariam com o papel de assessoramento do tema. Por fim, Eurico Figueiredo destacou que é de bom tom que um regime republicano democrático não perca de vista que a sociedade civil está acima do Estado. Nesse sentido, os militares sempre devem responder ao controle civil e o poder sobre as armas é para ser usado para defender a população civil e não os próprios militares.
A partidarização das Forças Armadas
No último dia 20, a jornalista Míriam Leitão publicou uma coluna no O Globo, na qual afirma que o contra-almirante (reformado) Antonio Nigro teria sido punido pela Marinha com um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), após entrevista dada à Globonews. Na entrevista referida, Nigro apresenta algumas de suas opiniões sobre o atual papel dos militares no cenário político brasileiro, sobretudo no que diz respeito à fiscalização das eleições que será feita por estes. Segundo o contra-almirante, “os militares sabem que não entraram nas escolas navais, ou nas academias militares, para serem fiscais de eleições ou exercerem qualquer outra atividade policial”.
A punição recebida pelo Almirante Nigro mostra como as Forças Armadas brasileiras sofreram um processo de partidarização alinhado aos ideais bolsonaristas, que nos últimos quatro anos se consolidaram em diferentes instâncias da política e sociedade brasileira. No entanto, o episódio também evidencia que, apesar de Bolsonaro exibir a bancada militar como sua base de apoio desde sua campanha eleitoral de 2018, não há mais uma unidade ideológica que os guie. De acordo com Jorge Branco, em matéria publicada no Brasil de Fato, “o episódio da censura ao Almirante Nigro evidencia dois aspectos que precisam ser observados de um ponto de vista da restauração democrática plena no país. As declarações durante a entrevista, sinalizam que há dissenso nas Forças Armadas no que diz respeito às visões antidemocráticas. Demonstram também a que ponto de impunidade chegaram os membros da cúpula bolsonarista entre os militares.”
Ao longo da matéria, Míriam Leitão apresenta casos de militares da ativa que agiram indisciplinadamente, como o general Pazuello, e não foram punidos, uma vez que estavam de acordo com o governo. Assim, Antonio Nigro expõe que sentiu-se fortemente constrangido pelo episódio, principalmente por ser um militar já reformado, isto é, não pode ser restituído ao serviço ativo como um oficial da reserva. Além de ser um caso de censura, ele também coloca em pauta a discussão sobre qual será o lugar das Forças Armadas a partir dessas eleições, sobretudo com uma possível vitória da esquerda, uma vez que, apesar dos militares estarem, em sua maioria, conectados ao bolsonarismo, eles não mais formam uma unidade de pensamento pró-Bolsonaro.
É interessante observarmos essa matéria da jornalista Míriam Leitão, que levanta algumas possibilidades de dissenso dentro das organizações militares. Porém, também deve-se ter em mente as análises de outros pesquisadores das Forças Armadas, como Pieiro Leiner e João Martins (UFSCAR) ou do coronel reformado Maurício Pimentel. Esses últimos têm apresentado visões bem diferentes: as FAs mantêm uma coesão de atuação na defesa de seus interesses, algo que não deverá mudar no próximo ciclo presidencial. Desde o impeachment de 2016, o estamento militar brasileiro tem ocupado maciçamente diferentes cargos na administração pública. No governo Bolsonaro, marinha, exército e aeronáutica tiveram aumentos salariais, foram poupados de reformas previdenciárias, ampliaram a participação no processo eleitoral com vários deputados federais e estaduais e aumentaram sua fatia no orçamento federal.
Mais importante: além das prebendas e da fatia no orçamento, segue presente o poder político do estamento militar. Eles continuam se apresentando como “guardiães da república” e fiadores da estabilidade governamental dos governos civis. Esse, sem dúvida, será um desafio permanente para futuros governos civis.
Surgem informações na imprensa sobre o posicionamento oficial do Alto Comando do exército brasileiro acerca do resultado das eleições. Uma matéria foi veiculada no jornal O Estado de São Paulo e repercutida em vários órgãos noticiosos, como a CNN Brasil. Segundo o artigo, os generais estariam fechados com a aceitação do resultado das eleições, ou seja, aceitariam o vencedor chancelado pela apuração do TSE. Após o acesso aos códigos-fontes, a cúpula dos oficiais comandantes chegou à conclusão de que as urnas são seguras. Obviamente, a assessoria de imprensa do exército negou que esse assunto tivesse sido na última reunião do Alto Comando, ocorrida em 15 de Setembro.
De qualquer modo, a simples veiculação dessa matéria e o tom de “alívio” que cercou a sua veiculação são um indício forte de que as Forças Armadas, e especialmente o exército brasileiro, ainda se comportam como fiadores do poder político civil e dos processos eleitorais, algo que não é, absolutamente, da alçada da burocracia militar.
Candidaturas das Forças Armadas nas eleições
Em julho, a expectativa era de que as candidaturas de militares das forças armadas atingissem a marca de 58 nas eleições deste ano. As pesquisas indicam que tais candidaturas estão vinculadas principalmente aos partidos de direita – como o PL, PTB e Republicanos. Sendo assim, contam com os votos dos eleitores conservadores e que tendem a se identificar como apoiadores do atual presidente. Nas mídias sociais, as manifestações e campanhas apresentam o mesmo viés do Bolsonaro: compartilhamento de fake news, descredibilização do sistema eleitoral e das urnas eletrônicas.
O candidato a deputado federal do Piauí, Major Costa Araújo, usou o Twitter para afirmar que o sistema eletrônico de votação já teria sido fraudado em outras eleições, e que poderia ser fraudado novamente pelos próprios membros do TSE. A desinformação é disseminada sem que qualquer indício de risco à transparência e à segurança das eleições tenha sido identificado. No mesmo sentido, o Coronel Paulo Costa (candidato a deputado estadual no Pará), usou a mesma plataforma para dizer que o hacker “entra, dorme caga e anda no sistema” e que confiar nas urnas seria “papo de leso”. Outro aspecto a respeito do envolvimento das Forças Armadas nas eleições é o Estatuto dos Militares, cuja Lei 6.880 não admitiria o uso das designações hierárquicas em atividades político-partidárias.
Divergindo das campanhas polemizando o sistema eleitoral e das próprias candidaturas de militares, o ex-presidente e candidato Lula (PT) declarou em discurso no dia 17 de setembro: “Nós queremos as Forças Armadas preparadas, equipadas, bem formadas, para ninguém se meter a invadir o Brasil. Não queremos as Forças Armadas se metendo nas eleições do nosso país e nem querendo controlar as urnas. Nós já lidamos com as Forças Armadas e as tratamos com muito respeito, e vamos tratar com muito respeito, e é preciso que alguns de lá tratem a sociedade civil com respeito, que nós sabemos cuidar de nós e não precisamos ser tutelados”.
É possível notar que dentro da polarização política no Brasil, está a polarização sobre o papel das Forças Armadas. Com o Bolsonaro, os militares ganharam força e oportunidade de se envolverem em governos e partidos, quando, na realidade, o comprometimento das forças deveria ser com a segurança nacional independentemente do partido do chefe de estado.
Ministério da Defesa: relatórios de redes sociais
Em 17 de setembro, o portal The Intercept Brasil, divulgou a informação de que o Ministério da Defesa (MD), “estaria escondendo relatórios de redes sociais com dados pessoais por temer narrativas mal-intencionadas”. Segundo a matéria, em 2021, o MD contratou uma empresa para monitorar as redes sociais, porém se recusa há “meses a divulgar os relatórios produzidos pela empresa Supernova Serviços de Informação”. Como justificativa para a não divulgação dos relatórios, o MD informou que os mesmos “podem ser instrumento de narrativas mal-intencionadas e vazias de boa-fé, induzindo julgamento impróprio e prejudicial ao Ministério”. Na justificativa para a contratação do serviço, foi citado uma das diretrizes da Política Nacional de Defesa, referente à “sensibilizar e esclarecer a opinião pública, com vista a criar e conservar uma mentalidade de defesa nacional, por meio do incentivo ao civismo e à dedicação à Pátria”. Destaca, ainda, que no contrato, a empresa “deveria indicar a repercussão (o que ?), perfis influenciadores (quem), mídia (onde, quando), reputação e polarização (como)”. A não divulgação dos relatórios usando diferentes justificativas, seja por demanda de trabalho, propriedade intelectual, “informações inacabadas” ou desvantagem comercial, não impulsiona o “esclarecimento da opinião pública para criar uma mentalidade de defesa nacional”. Além desse aspecto, a aplicação do inciso I do artigo 31 da lei de Acesso a Informações, pode talvez demonstrar que o governo pode usar instituições de Estado, como as Forças Armadas, para fins não constitucionais. Dentro de um cenário mais amplo, infelizmente, a negação do acesso aos relatórios, pagos com dinheiro público, demonstra como está obstruída e limitada às relações civis-militares. Por esse motivo, é muito importante que todos os partidos políticos brasileiros compreendam a necessidade de investir em políticas que consolidem o controle civil sobre os militares.
O TCU contrapõe os Militares nas Eleições
Após avanços dos militares sobre o seu papel fiscalizador nas eleições brasileiras de 2022, o TCU (Tribunal de Contas da União) resolveu entrar no jogo. A princípio, o principal órgão fiscalizador fará uma apuração paralela dos votos para contrapor ao mesmo tipo de apuração planejada pelos militares, segundo informa o Estadão. O que se destaca na ação do TCU são os números: 4.161 urnas serão auditadas. Um número 14 vezes maior do que as 300 urnas, a serem analisadas pelos militares. Segundo o jornal, tal número é elevado de forma proposital para se ter mais legitimidade caso os militares forneçam informações questionáveis, favorecendo o clima de instabilidade promovido pelo presidente Jair Bolsonaro.
Segundo a Folha, o TCU também enviou uma lista com questionamentos aos métodos a serem utilizados pelas Forças Armadas. Tal atitude gerou incômodo entre os militares que entendem que não cabe ao Tribunal fiscalizar os trabalhos das Forças Armadas. Em outra reportagem, a Folha sugere que o próprio TSE (Tribunal Superior Eleitoral) estimulou o TCU a contrapor a iniciativa castrense.