18 de outubro de 2022
Por Gabriel de Castro Soares, Flávio Thales, Juana Lorne, Heuler Costa Cabral, Letícia e Mohammed Nadir (Foto: Agência Brasil)
Como não é considerado um espaço de players do sistema internacional por Bolsonaro, em sua proposta o continente desaparece em meio a um debate restrito sobre a política externa brasileira
No momento em que o Brasil está em plena campanha eleitoral para eleger o presidente para os próximos quatro anos, muitas dúvidas têm sido colocadas sobre o rumo do país e sobretudo sobre a política externa que tem sido conduzida nos últimos quatro anos de forma errática e heterodoxa. A relação com a África foi a que mais sofreu as consequências do descalabro diplomático durante a governação de Jair Bolsonaro e seu chanceler Ernesto Araújo.
Longe vão os anos da presidência de Luiz Inácio Lula da Silva e seu ministro Celso Amorim, em que as relações Brasil-África tiveram seu maior grau de parceria e cooperação estratégica. Com a chegada de Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto, a relação com a África sofreu grave inflexão fazendo lembrar tempos remotos em que o continente africano nem constava na pauta da diplomacia brasileira. Nesse ponto recorde-se a frase do presidente Fernando Collor de Mello, que afirmava que para o Brasil era melhor ser “o último entre os primeiros do que o primeiro entre os últimos”, para justificar o alinhamento às grandes potências no início da década de 1990 e, por extensão, o desprezo político ao continente africano.
Historicamente no Brasil foi sempre enfatizada a dimensão identitária que se baseia na longa história de aculturação com os africanos, pelo fato de possuir a maior população negra fora do continente africano, fato esse que foi utilizado como elemento de legitimação da agenda brasileira para as nações africanas. O argumento era de que os brasileiros compreendem as sociedades africanas porque ainda convivem com os legados culturais do continente em sua própria sociedade. O processo de aproximação teve vários momentos de construção no âmbito da política externa brasileira. O passo inicial foi dado com o governo de Jânio Quadros, que tinha, justamente, a intenção de preencher o que se entendia ser um vácuo deixado pelos europeus.
Pouco depois foi criada pelo Ministério das Relações Exteriores a divisão específica para tratar de assuntos relativos ao continente, do Instituto Brasileiros de Assuntos Afro-Asiáticos (IBEAA), para suprir a lacuna em termos da pesquisa científica relativa a África, e por último foram criadas as primeiras embaixadas no continente (Gana, Nigéria, Quênia e Senegal entre outros).
Anos mais tarde, e já na ditadura militar, começaram a ser implantadas as primeiras políticas para promover o comércio entre o Brasil e o continente africano, junto com o discurso da democracia racial, como estratégia para reforçar os laços culturais dos brasileiros com os povos africanos.
Nos anos 1980, marcados pela crise econômica, as relações sofreram um certo recuo, sobretudo no início dos anos noventa, que coincidiram com a presidência de FHC. As relações com o continente africano perderam espaço na agenda brasileira, o que se refletiu no fechamento de embaixadas e diminuição dos recursos transacionados.
Ainda que as relações com os países de língua portuguesa se mantivessem como ponto estratégico, consolidando a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) e com o fechamento de diversos acordos, as relações entre o Brasil e as nações africanas no governo Fernando Henrique não chegaram selar um verdadeiro compromisso, se baseando no pressuposto do que o continente africano “estava à deriva”, e como tal havia razões fortes para um compromisso estratégico.
Em contraste às políticas de FHC para a África, há não só uma retomada como um estreitamento das relações durante os dois mandatos do governo Lula, como parte de um projeto mais amplo de ascensão no cenário internacional, com a projeção no Sul Global como estratégia fundamental.
Deste modo, a política externa de Lula e seu chanceler, Celso Amorim, alinhou o pragmatismo encontrado no universalismo, ampliando o escopo de influência e de potencial de trocas econômicas, ao caráter político do diálogo Sul-Sul. Somando este cenário ao momento de ascensão e crescimento econômico expressivo do continente africano no século XXI, que se tornou palco para aumento de Investimentos Externos Diretos em um período de inserção na economia internacional, a relação do Brasil com o continente africano passou pela diversificação e ampliação de parceiros, aumentando o volume de trocas de US$4 bilhões em 2000 para US$20 bilhões em 2010, com um crescimento de 408%.
Em termos políticos as relações afro-brasileiras atingiram dimensões nunca antes alcançadas. Sob o lema de diplomacia “ativa e altiva”, o Brasil sob a presidência de Lula e seu ministro dos assuntos exteriores, abriu várias embaixadas e com dezenas de viagens oficiais e de Estado ao continente africano. O saldo foi ambicioso e permitiu ao Brasil superar até as tradicionais potências europeias que por norma e razões históricas monopolizaram as relações com África. Basta olhar para o número dos acordos de cooperação técnica que atingiu, 238 acordos fechados com 90 países africanos, em comparação apenas aos 36 acordos fechados com FHC com 23 países.
Em termos estruturais e simbólicos esse salto diplomático com o continente africano se inseriu num desejo forte do Brasil com vistas à concertação de forças emergentes para influenciar o sistema internacional e torná-lo mais multipolar, e por outro lado fazer pressão sobre o conselho de segurança da ONU, demandando a incorporação de novos membros permanentes, através das negociações na esfera da Organização Mundial do Comércio (OMC) ou no que tange às questões climáticas e ambientais.
Já no plano simbólico, o discurso que há anos se sustentava na ideia de que o Brasil era um aliado natural dos africanos por constituir historicamente uma democracia racial, foi substituído pela representação de uma sociedade que afirmava o seu engajamento com o combate ao racismo e reconhecia a sua dívida histórica com os povos africanos devido ao fomento do tráfico negreiro.
Desse modo as políticas de ações afirmativas, que ganharam impulso com assinatura de compromissos antirracistas na Conferência de Durban em 2001, foram incorporadas a um pacote amplo de políticas públicas que foi utilizado para demonstrar aos parceiros do continente africano a expertise que os brasileiros poderiam oferecer no combate à fome e na luta contra as desigualdades sociais.
A África nos programas eleitorais
A política externa não é um tema com grande espaço nos programas dos presidenciáveis. Quando citada, é tratada de maneira muito genérica, ou de maneira secundária. Os programas que não detalham pontos das agendas de política externa tratam de maneira geral de mudanças nas relações comerciais com outros países, sem citá-los especificamente.
O programa do atual presidente lista uma série de propostas que estão em descompasso com a trajetória da política externa do governo, afirmando a importância das negociações multilaterais e a preocupação com a preservação da maior cobertura de floresta nativa do mundo.
Bolsonaro enfatiza a importância do Brasil aderir às regras da OCDE, impulsionando mudanças institucionais para incrementar o ambiente de negócios e a integração internacional. também não aborda a relação do país com a América e Latina e sugere um alinhamento com os países do norte global. O continente africano, como não é considerado um espaço de players do sistema internacional, desaparece em meio a um debate restrito sobre a política externa brasileira.
O continente africano é mencionado somente no programa de Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores. O programa do Partido dos Trabalhadores propõe a reconstrução do Estado e da soberania, retomando a ideia de política externa ativa e altiva. O cenário atual é tratado como um momento de perda do protagonismo global dos brasileiros, que deve ser revertido por meio da política de cooperação Sul-Sul. Os países africanos são mencionados como parceiros importantes na construção de uma agenda que fomente o desenvolvimento das economias mais pobres do sistema internacional e rearticule a pressão para a ampliação dos assentos nos organismos multilaterais. O fortalecimento do Mercosul, da Unasul, Celac e os Brics é citado como uma das formas primordiais para reconstruir a soberania brasileira.
No caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, devido ao histórico de seu envolvimento com a construção de uma agenda específica para a África, o continente já foi tema de comentários e entrevistas algumas vezes, desde que passou a se posicionar como um presidenciável. Já em novembro de 2021, no Fórum Brasil África, Lula enfatizou a importância dos países africanos na retomada de uma política externa mais ativa do Brasil, observando que o país poderia contribuir com o desenvolvimento do continente e tirá-lo de uma situação de “segregação” no sistema internacional. Diante de uma disputa entre Estados Unidos e China, caberia aos brasileiros protagonizarem a articulação de blocos latino-americano e africano para fortalecer as posições políticas dos países periféricos.
Na fala do candidato, um retorno à presidência significaria a retomada natural de relações estratégicas com os países africanos, reorganizando uma agenda de investimento e compactuando novos compromissos políticos.