30 de maio de 2023
Por Ana Beatriz Aquino, Audrey Andrade Gomes, Felipe Teixeira da Silva, Gustavo Mendes de Almeida, Henrique Mario de Souza e Laura do Espírito Santo Silva (Imagem: Jonathan Miranda/Presidência do Equador)
As últimas disputas eleitorais na América Latina apresentaram vitórias de setores progressistas em alguns países, levantando debates sobre uma possível nova onda rosa. Entretanto, neste mesmo período, apesar de uma série de derrotas nos pleitos, a extrema-direita passou a ganhar espaço, seguindo uma tendência que já se materializou na Europa e nos EUA, e que pode se traduzir em êxitos mais robustos também no continente.
A extrema direita e a influência dos países centrais
O cenário de crise socioeconômica e desesperança popular tem se mostrado ambiente propício para a propagação de movimentos da extrema direita, com discursos salvacionistas, preconceituosos e falsos. Neste quadro, são colocadas em prática políticas de exclusão de de setores vulneráveis da população, como negros, mulheres, imigrantes, homessexuais, etc, para consolidar apoio de outras camadas sociais. Aqui entra o discurso de ódio contra tais setores, o que, em geral, solidifica um sentimento de medo e ódio em fileiras que acabam se revelando como núcleos duros da ultradireita. A exaltação nacionalista e a criação imaginária de um inimigo comum – o comunismo, o gramscismo ou o globalismo – se colocam como instrumentos complementares que amarram num corpo ainda maior os fiéis apoiadores de ideias extremistas. Assim, a ultradireita passa a se articular de maneira mais ousada, não mais escondida em pequenas células, mas capturando parcelas dos aparelhos de Estado. Um importante ponto de virada se dá a partir da eleição de Donald Trump nos EUA, em 2016.
Uma das principais pautas levantadas por Trump foi a questão migratória. Diante de um número crescente de estrangeiros irregulares adentrando os EUA por sua fronteira sul, o republicano levantou questões econômicas e de segurança para reafirmar um nacionalismo xenófobo e prometer fazer uma América grande novamente. A frase do slogan traz agora um objeto direto: “Make America great again for us” de claro viés excludente.
O comando da potência hegemônica nas mãos de Trump, acompanhado de um nacionalismo exacerbado e da plena prevalência do capital financeiro, faz com que tais concepções, adormecidos na política institucional, despertassem e se espalhassem para outras regiões do planeta, ganhando especial abrigo na Europa.
Em 2017, a eleição parlamentar alemã daria indícios de um movimento que logo adentraria o resto do continente: com uma agenda anti-imigratória e contornos neonazistas, o partido de extrema direita Alternative für Deutschland (Alternativa para a Alemanha) ganhou 12% dos assentos no Bundestag [parlamento], ficando atrás apenas da Democracia Cristã e do Partido Social-Democrata, os mais tradicionais do país. Desde então, movimentos similares ocorreram em outros países, como o gradual crescimento de Marine Le Pen na França entre os pleitos de 2012, 2017 e 2022, o fortalecimento de partidos como o VOX na Espanha – que praticamente dobrou sua votação no pleito municipal de 28 de maio – e o Chega! em Portugal, além da ascensão de figuras como Giorgia Meloni e Matteo Salvini na Itália – atual primeira-ministra e vice-primeiro-ministro, respectivamente. Na porção oriental do continente, a Hungria de Viktor Orbán e o governo de Andrzej Duda na Polônia são outras demonstrações da força da ultradireita no atual contexto.
As vozes extremistas europeias e americanas ecoaram e chegaram à América do Sul, materializada pela proximidade entre Donald Trump e os partidos da ultradireita europeia com a família Bolsonaro. Neste contexto, podemos colocar o ex-presidente brasileiro como um catalisador do radicalismo conservador na região ao longo de seu mandato, servindo de inspiração para figuras que combatem tanto a esquerda quanto a direita tradicional, como Javier Milei (Argentina), Rodolfo Hernández (Colômbia), Paraguayo Cubas (Paraguai), Keiko Fujimori (Peru) e José Antonio Kast (Chile). É bem possível que a crise econômica e social, potencializada por três anos de pandemia e pelos impactos da guerra na Ucrânia, tenha aberto terreno fértil para a propagação dos ideais da extrema direita na região.
O fascismo neoliberal
A ofensiva da extrema direita no continente lançou mão de discursos patrióticos, apelos religiosos e uso extensivo das redes sociais. A internet se tornou o campo de batalha de campanhas que primam pela difusão de notícias falsas, evidenciando o declínio do tradicional marketing político. Além disso, o levante reacionário observado entre 2015-2022 ainda não foi superado em alguns Estados. Profundas mudanças institucionais alteraram ou privatizaram parcelas importantes do aparelho de Estado, reduzindo o raio de ação dos poderes eleitos em favor de interesses privados. Em meio a tais tendências, os presidentes que se declaram progressistas têm se afastado cada vez mais de suas promessas de campanha e das necessidades do seu eleitorado. Em alguns casos a legitimidade de governos reformistas perdem força e a cena política é tomada por exigências da oposição. É o casodo Chile e – pela maioria que a direita tem no legislativo – , possivelmente no Brasil. Na Bolívia, a gestão de Arce se distancia das propostas que o elegeram. Apesar de ser um antigo aliado de Evo Morales – um dos representantes da dita “Onda Rosa” latino-americana que se iniciou no final da década de 1990 -, representa, hoje, um motivo para a cisão do MAS (Movimento ao Socialismo), partido do qual os dois fazem parte.
A ascensão da extrema direita no Brasil
É possível que as manifestações de junho de 2013 no Brasil tenham criado o caldo de cultura para a emergência de uma extrema direita com força de massas. Protestos que se iniciaram contra o aumento nos preços de transporte coletivo logo passaram a exigir melhores serviços públicos. Diante da hesitação política que acometeu administrações do PT na capital de São Paulo e no plano federal, setores extremistas até então com pouca expressão passaram a disputar as ruas.
Em seu livro Amanhã vai ser maior: O que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual, a antropóloga brasileira Rosana Pinheiro-Machado (2019), afirma que essas manifestações “Foram as maiores marchas da história do país. Com variações locais, as multidões reivindicavam melhores bens públicos e se colocavam contra os abusos corporativos e a violência de Estado praticada em função da Copa do Mundo que aconteceria em 2014. Os protestos, em última instância, eram por mais democracia e contra o neoliberalismo”.
Contudo, existiu um processo de instrumentalização das mobilizações sociais pela extrema direita em ascensão no país, que contou com “um arsenal de recursos financeiros e tecnológicos muitas vezes inescrupulosos, como a máquina de fake news da Cambridge Analytica, empresa de Steve Bannon” (PINHEIRO-MACHADO, 2019), e que fazem com que a revolta popular se torne uma ferramenta importante nessa disputa.
Três eventos marcaram a conjuntura brasileira nos anos seguintes. A operação Lava Jato, verdadeiro tribunal de inquisição contra o Partido dos Trabalhadores, o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e a prisão do ex-presidente Lula, favorito para o pleito de 2018, marcaram o domínio que uma nova modalidade de fascismo no país.
Em 2018, a vitória da extrema direita no Brasil se concretiza com a eleição de Jair Bolsonaro (na época do PSL), em uma campanha marcada pelo discurso de ódio e pela polarização política. Como consequência desse processo, o país vivenciou quatro anos de constantes retrocessos, além de ter promovido um isolamento diplomático, fazendo com que o país fosse visto como “pária internacional”. Mesmo com a derrota eleitoral em 2022, após uma acirrada disputa com Lula (PT), que venceu as eleições com 50,83% dos votos contra 49,17% de Bolsonaro, a ultradireita permanece como força política importante no país. O atual partido de Bolsonaro, o Partido Liberal (PL) possui o maior número de cadeiras na Câmara e no Senado, abrigando 4 dos 5 deputados federais mais votados nas eleições de 2022.
O Bolsonaro portenho: respostas simples para problemas complexos
O ano de 2023 marca o último do mandato de Alberto Fernández, e novas eleições ocorrerão em outubro, em um cenário completamente nebuloso. O atual presidente já anunciou que não concorrerá à reeleição, e figuras como a atual vice-presidente, Cristina Kirchner, e o ex-presidente Maurício Macri, também já destacaram que estarão fora da corrida pela Casa Rosada. Em meio a uma situação caótica, causada pelo aprofundamento da crise econômica que assola o país, são grandes as incertezas.
Neste momento, Daniel Scioli, embaixador da Argentina no Brasil e vice-presidente de Néstor Kirchner (2003-2007); Sérgio Massa, o super-ministro da economia; e Eduardo “Wado” De Pedro, atual ministro do interior, são os principais nomes levantados pela coalizão governista.
Já a oposição, apadrinhada por Macri, tem em Horacio Larreta, atual prefeito de Buenos Aires, e Patricia Bullrich, ex-ministra da segurança, são as figuras que devem disputar a indicação final pela coligação Juntos por El Cambio. Entretanto, para além desse enfrentamento entre kirchneristas e macristas, um personagem peculiar vem ganhando destaque: Javier Milei, deputado federal pela coalizão A liberdade avança. Milei tem se colocado como um candidato anti establishment, tecendo críticas tanto à situação quanto à oposição. Com propostas radicais, como a extinção do Banco Central e a dolarização da economia argentina, se coloca como um anarcocapitalista. Sua boa colocação em levantamentos como o feito pelo Centro Estratégico Latinoamericano de Geopolítica (CELAG) no início de maio, demonstram que a ultradireita pode avançar. Uma enorme parcela insatisfeita da população pode trazer surpresas em poucos meses. Em geral, uma das características da extrema direita é propor respostas simples para problemas complexos, o que poderia agravar ainda mais a situação argentina.
Javier Milei, 52 anos, foi o terceiro deputado federal mais votado na eleição de 2021. Ferrenho crítico do economista inglês John Maynard Keynes, é admirador de Jair Bolsonaro e Donald Trump, além de ser próximo ao Vox, partido espanhol de extrema direita. Milei apresenta posicionamentos um tanto quanto controversos, que vai desde proposta de venda de órgãos humanos, até a contrariedade ao direito ao aborto, mesmo em casos de estupro, e a criação de uma livre comercialização de bebês. Extremamente conservador em direitos e liberal na economia, Javier Milei defende também a liberalização do porte de armas, a eliminação das obras públicas e o fim da obrigatoriedade do ensino primário e secundário. O candidato vem ganhando força principalmente entre o eleitorado com menos de 30 anos.
Hiperinflação, uma exponencial dívida com o FMI e a confusão promovida pela forte presença do dólar em conjunto com o peso argentino, dão os contornos de uma crise sem saída no curto prazo. A renegociação da dívida, a redução da inflação, o crescimento econômico e o reajuste salarial eram os principais focos de Fernández em matéria econômica. No entanto, um um contexto difícil, amalgamando a herança maldita deixada por Macri, a pandemia de covid-19, a guerra na Ucrânia e uma seca histórica em 2023 fizeram com que o atual presidente tivesse dificuldades para realizar seus projetos.
Situações de desesperança e desencanto criam terreno fértil para propostas messiânicas, e fazem com que um aventureiro como Milei, que há pouco nem seria cogitado, ganhe importância para a disputa presidencial.
A extrema direita chilena e a nova constituinte
No Chile, tudo indica que uma onda progressista ocorrida em 2020-21 se reverteu com uma vitória da extrema direita na eleição constituinte de 5 de maio. Partidários de José Antonio Kast, que perdeu a disputa presidencial para Gabriel Boric, há um ano e meio, conquistaram, juntamente com a direita, 33 assentos em 51 na elaboração da nova Carta. Podem aprovar qualquer proposta.
É uma situação grave, do ponto de vista democrático. O governo perde a capacidade de iniciativa e de definição da pauta nacional. Ocorre uma reversão da tendência de giro à esquerda manifestada em três oportunidades entre 2020-21: o plebiscito para a convocação original da convenção constituinte, a eleição dos delegados e a vitória de Gabriel Boric à presidência.
Boric constituiu um governo ambíguo internamente e alinhado a Washington no plano internacional. Eleito no impulso das movimentações populares de 2019-20, não conseguiu corresponder às enormes expectativas sociais por mudanças. Isso se deu em especial por seu apego às políticas de austeridade fiscal
O governo nunca teve o controle pleno do aparato de segurança estatal e demorou quatro meses após a posse para apresentar medidas que melhorassem a vida do povo de forma imediata. A queda de popularidade foi acentuada ao longo de um ano de mandato.
Sua maior derrota se deu no plebiscito para a aprovação do anteprojeto de Constituição, em setembro último. Sem comando claro – apesar dos setores progressistas contarem com 117 lugares em um total de 155 convencionais – os integrantes aprovaram medidas que deram argumentos para uma pesada campanha conservadora, repleta de fake news. Entre elas estava a introdução do direito ao aborto na Carta Magna – algo inexistente em qualquer outro país – e a defesa de um Estado plurinacional. Não se contesta aqui a justeza ou não dos dois pontos, mas a forma como foram apresentados.
A nova Constituição já chega com seu pré-projeto pronto: uma comissão de 24 “especialistas”, indicada pela direção do Legislativo, de maioria conservadora, traçou as balizas para os cinco meses de prazo acordados para a apresentação da forma final da lei maior. Além disso, um comitê técnico de admissibilidade composto por 14 pessoas juristas indicados pelo Senado tratarão de aparar arestas nas normas a serem debatidas.
O país que por dezessete anos foi governado por uma ditadura sanguinária de extrema direita (1973-1989), hoje se encontra em um dilema, após os desdobramentos das eleições parlamentares de 2021 e do plebiscito constitucional reprovado em 2022. Em 2021 Gabriel Boric foi eleito presidente, o mais à esquerda desde o retorno da democracia no país. Em contrapartida, seu principal adversário no pleito, José Antonio Kast, além de ter maiores percentuais no primeiro turno, também foi, historicamente, o candidato de extrema direita mais votado no período democrático pós-ditadura Pinochet.
A base de apoio de Kast é dada pelo Partido Republicano, fundado por ele mesmo em 2019, composto por conservadores e vertentes do cristianismo. O Partido Republicano emerge como força principal, assumindo papel de destaque na esfera pública. Sua ascensão se dá em meio a uma conjuntura desafiadora, devido a crise de imigração, inflação e a crise de segurança que o país enfrenta. Esses fatores têm contribuído para que os republicanos conquistem uma parcela significativa do apoio popular, encontrando naqueles que veem nas promessas de segurança e ordem uma resposta aos desafios prementes.
O governo Boric não passa por um bom momento, com baixa popularidade e um complicado cenário econômico, o atual presidente do Chile ainda não conseguiu responder aos anseios da população. Neste momento, o Chile se vê em um paradoxo, afinal, está nas mãos dos herdeiros de Pinochet a caneta que substituirá seu texto, e que consequentemente, não será capaz de empregar as medidas levantadas pela população nas manifestações de 2019.
Embates acalorados
Gustavo Petro, presidente eleito da Colômbia em junho de 2022 por uma coalizão progressista, mudou subitamente seu ministério no final de abril. Diante de votos contrários no Legislativo a projetos oficiais por parte de agremiações que participam do governo, o mandatário virou a mesa. Pediu a renúncia de todos os ministros e trocou sete titulares. A lista inclui José Antonio Ocampo, ex-professor na Universidade de Colúmbia e uma espécie de fiador do governo junto ao mercado internacional. Entre as reformas, a mais sensível é a do sistema de saúde, que visa eliminar intermediários privados nas redes públicas de pronto-atendimento.
Petro coloca seu mandato em risco, numa disputa de poder entre o Estado e grandes interesses privados. Caso saia vitorioso, mostrará interna e externamente que o enfrentamento vale a pena. Sua taxa de aprovação caiu de 40% em fevereiro para 35% na metade de abril, segundo o instituto Invanmer. A maioria parlamentar anterior reduziu-se a cerca de 20% nas duas casas legislativas.
Petro literalmente chutou o balde diante de obstáculos semelhantes que ameaçam a nova safra reformista de governantes sulamericanos, eleita a partir de 2019. Os constrangimentos são representados por ameaças da direita e da extrema direita, por reformas regressivas e privatizantes e pela queda acentuada da qualidade de vida da população, após três anos de pandemia e de efeitos da guerra na Ucrânia.
A Colômbia, juntamente com a Venezuela, é o único país sulamericano que não atravessou períodos de ditaduras militares nos anos 1960-80. No entanto, a extrema brutalidade de governos pretensamente democráticos deram lugar a uma oposição armada e também violenta, materializada em grupos de guerrilha rural. A partir dos anos 2000, a extrema direita personalizada em Alvaro Uribe chega ao poder decidido a eliminar a guerrilha sem medir a extensão da própria violência. O uribismo se tornou sinônimo do radicalismo de direita no país.
Uribe foi acusado de violações de direitos humanos e o uribismo manteve-se no poder até 2022. Após uma profunda crise econômica, a centro-esquerda chega ao poder.
Atualmente, a Colômbia é governada pelo primeiro presidente de esquerda do país, Gustavo Petro, um ex-guerrilheiro do M-19. Petro foi eleito no segundo turno, com 50,44% dos votos, em uma disputa acirrada contra o candidato Rodolfo Hernández. Com um discurso conservador e abertamente admirador de Adolf Hitler, Hernandez representa a extrema direita colombiana. Essa eleição foi considerada a mais violenta até então, pois diferentemente dos anos anteriores em que o embate era entre direita liberal e extrema direita, dessa vez não havia nenhum candidato do uribismo com chances reais de vencer, o que indica que a Colômbia se encontra em um cenário político polarizado entre a frágil esquerda e a tradicional extrema direita.
Paraguai
Assim como o país andino, a política do Paraguai também é marcada por um embate hegemônico entre dois partidos. O Partido Colorado, fundado em 1887, é um clássico partido de direita, possuí um caráter nacionalista ao passo que defende o liberalismo economico e o conservadorismo social. Do outro lado da disputa está o Partido Liberal, fundado em 1978 como oposição à ditadura de Stroessner, com um discurso de liberalismo socioeconômico.
O Partido Colorado foi responsável por um dos regimes mais violentos da América Latina, a Ditadura Stroessner, que durou 45 anos. Com exceção do governo de Fernando Lugo (2008-2012), deposto por um golpe parlamentar um ano antes de terminar o mandato, o Colorado está no poder desde 1947.
Em abril de 2023, Santiago Peña do Partido Colorado, derrotou seu adversário liberal, Efraín Alegre, com 42,7% dos votos, perpetuando a hegemonia colorada. No entanto, o que realmente chamou atenção nessa eleição foi o candidato da extrema direita, Paraguayo “Payo” Cubas, que mesmo com diversas declarações xenofóbicas e anti-institucionais alcançou significativos 22% dos votos, indicando uma ascensão da extrema direita no país.
Peru
O Peru vive há mais de uma década um quadro de decomposição institucional sério. Em 2021, o país elegeu Pedro Castillo, professor e sindicalista de esquerda, a presidência da República. Após um ano e meio de crises recorrentes e sem base social definida, Castillo tentou uma manobra desesperada para se manter no poder: valeu-se de um artifício constitucional – destituir o Congresso e chamar novas eleições – no início de dezembro de 2022. Sem força política, foi derrubado.
No mérito o que Castillo fez não é um golpe, mas uma prerrogativa constitucional, numa Carta com regras complicadas para a dinâmica democrática.Vigora lá um parlamentarismo torto, sem primeiro-ministro, no qual o Congresso pode quase tudo, de aprovar ou não ministros a decretar impeachment por motivos absolutamente subjetivos (“incapacidade moral”, por exemplo). De outra parte, o presidente pode, em determinadas condições, dissolver o Congresso e convocar novas eleições. Tem de ter força para isso, o que Castillo definitivamente não tinha.
Sua vice, Dina Boluarte, se associou à extrema direita e agora governa o país com extrema repressão.
América Central: contextos históricos e políticos
A América Central mergulhou em um turbilhão de acontecimentos no decorrer do século XX. Ditaduras militares estabeleceram-se na região em países como Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua e Panamá que, assolados por governos autoritários, viram-se envoltos em uma teia de influências externas como os dos EUA durante a Guerra Fria, que se entrelaçaram com seus destinos – com exceção da ditadura panamenha, que possui peculiaridades.
Na Guatemala, por exemplo, uma sombria página da história do país foi escrita durante o período da ditadura militar, que se iniciou com um golpe em 1954 e estendeu-se até 1986, lançando a nação em uma espiral de repressão, instabilidade e violência. Um dos piores momentos desse período ocorreu sob a ditadura de José Efraín Ríos Montt, entre 1982 e 1983, quando o país testemunhou uma das fases mais sangrentas de toda sua trajetória. O regime impiedosamente oprimiu a população indígena e praticou violações sistemáticas dos direitos humanos.
As cicatrizes dessas experiências traumáticas perduram profundamente na sociedade guatemalteca até os dias atuais, influenciando a polarização política que se manifesta hoje e, ironicamente, abrindo espaço para o surgimento de forças de extrema direita, que apelam a uma narrativa de segurança e ordem. O atual presidente é Alejandro Giammattei, conservador eleito em 2019, que já acumula em seu governo denúncias de corrupção, censura ao sindicalismo, aumento de agressões a defensores dos direitos humanos, prisão de opositores, entre outros fatos.
Já na Nicarágua, a ditadura de Anastasio Somoza (1936-1979) deixou um legado de repressão e autoritarismo. A Revolução Sandinista, que derrubou o regime de Somoza, trouxe esperança de mudança e democracia, mas ao longo dos anos, o governo liderado pela Frente Sandinista de Libertação Nacional, tem sido criticado e vitimado internacionalmente por suas práticas autoritárias e restrições à liberdade de expressão e manifestação.
Atualmente, o governo da Nicarágua é liderado por Daniel Ortega (FSLN), que está no poder desde 2007 e foi reeleito pela última vez em 2021, num processo eleitoral criticado pela comunidade internacional que o classificou como “ilegítimo”. É importante ressaltar que o país sofre há anos com sanções internacionais que inviabilizam práticas econômicas importantes no sustento do país, por parte dos EUA, UE e outros países de relevância no cenário econômico mundial. É justamente a desilusão com o governo sandinista de esquerda que vem abrindo espaço para o ressurgimento de grupos de extrema direita no país, alimentados pela insatisfação popular.
Tal como outros países latino-americanos, Honduras tem em sua formação social e política uma forte influência católica e conservadora, principalmente em relação a assuntos ditos “progressistas” como direitos LGBTQ+ e aborto.
A vitória da atual presidente do país, Xiomara Castro, do partido de esquerda Liberdade e Refundação (Libre), nas eleições de 2021 encerra 12 anos do governo ultraconservador de Juan Hernández e representa a volta da esquerda hondurenha ao poder pela primeira vez desde que Manuel Zelaya (marido de Xiomara) foi deposto em um golpe de Estado apoiado pela direita em 2009, tornando-a a primeira mulher a comandar o país, sob a promessa de restituir a ordem democrática direta.
El Salvador experimentou uma notável reviravolta política nos anos recentes, cujo impacto reverberou nas eleições legislativas de 2018. Elas lançaram luz sobre um panorama em metamorfose, revelando uma inclinação marcante em direção a partidos de orientação conservadora, notadamente representados pela Aliança Republicana Nacionalista (ARENA).
O mapa político foi redesenhado, O balanço de forças sofreu uma mudança, desafiando a ordem estabelecida e abrindo espaço para um protagonismo político, aparentemente antidemocrático. Atualmente, El Salvador é governado por Nayib Bukele, que se apresenta como uma figura controversa, que preocupa em relação às demonstrações de concentração de poder e desrespeito ao pleito democrático – como exemplifica a recente destituição de juízes da Suprema Corte pelo Parlamento em 2021.
A crescente influência da extrema direita na América Central desperta preocupações sobre a estabilidade democrática e os direitos humanos. Olhando atentamente para a história dessas nações, é inegável que as feridas abertas pelas ditaduras que assolaram a região no século XX permanecem como cicatrizes que moldam o pano de fundo político que permeia os dias atuais. O cenário é denso, as preocupações são palpáveis: a estabilidade democrática e os direitos humanos caminham numa corda bamba, exigindo reflexões profundas e ações incisivas para assegurar um futuro digno para todos os habitantes da região.
A polarização política, a busca por soluções rápidas e a retórica demagógica encontram terreno fértil nessas circunstâncias traumáticas, permitindo que a extrema direita se estabeleça como uma opção política aparentemente atraente perante a desconfiança nas instituições democráticas.
Rota incerta
Ao contrário do panorama do início do século, quando a entrada da China no mercado mundial, com sua alta demanda por commodities gerou quase uma década de prosperidade na periferia (2004-14), a economia internacional tende a se desacelerar, com fortes sinais de estagnação nos EUA e recessão em partes da Europa.
Fragilidades estruturais nos países menores e pressões fiscalistas e antidesenvolvimentistas por parte de hipertrofiados sistemas financeiros colocam a nova onda reformista em questão. A emergência do neofascismo na região surge como ameaça à democracia, num período em que uma onda neoliberal muito mais agressiva que a vivida nos anos 1990 afronta não apenas o caráter público do Estado, como o próprio funcionamento da democracia.