14 de junho de 2023
Por Dante Apolinario, Gabriel Horacio de Jesus Soprijo, Lívia Romano F. da Cruz, Lucas Santiago Portari, Luciana Henrique, Mariana Barboza Cerino¹ (Imagem: Tomaz Silva/Agência Brasil)
Os impactos institucionais da Operação Lava Jato, em seu trato de “criminalização” de setores do próprio poder público, resumiram-se a manobras jurídicas de deslegitimação de políticas econômicas fundamentais. Exemplo gritante com relação ao BNDES, em particular sua atuação internacional. Cabe ao governo eleito recuperar o papel do Banco em prol da reindustrialização e da geração de emprego & renda.
Introdução
Ao retornarmos ao processo da Operação Lava-Jato, o BNDES foi uma das instituições duramente acusadas de financiar projetos, fora do país, de companhias envolvidas em denúncias de corrupção. Em virtude disso, foi instaurada a CPI do BNDES em 2015, para investigar a participação do Banco em possíveis esquemas. Dada à luz dos fatos, como consta no próprio site da instituição, as acusações acabaram por revelar-se infundadas. Mas isso não impediu que um certo panorama de incerteza, em relação ao Banco em questão, se construísse.
Já no início do ano de 2023, Lula afirmou, no discurso de posse do novo presidente do BNDES, que o motivo da escolha pelo nome de Aloizio Mercadante era porque o país necessitava de alguém que pensasse em “desenvolvimento” e em “reindustrializar” o país. As oportunidades com uma possível exportação de bens e serviços produzidos no Brasil é a de que aumente a competitividade das empresas brasileiras, entradas de divisas e geração de empregos. Dessa forma, poderia ocorrer uma expansão do mercado brasileiro e o desenvolvimento de novas tecnologias .
Por um lado, alguns dos riscos de tal empreitada, como apontado por Nelson Marconi, da FGV, estão no fato de que esse investimento poderia ser destinado para o próprio país, não para fora. Por outro, o posicionamento de Mercadante no que tange a projeção brasileira não poderia ter sido mais claro. Em entrevista recente no programa Roda Viva, Mercadante enfatizou o lançamento de linhas de crédito para exportação. Isso porque, se não ocorresse uma ajuda por parte do Banco de Desenvolvimento, a indústria brasileira correria sério risco de colapso: “Nós somos 2% da economia mundial. Se as empresas brasileiras não exportarem, e disputarem o mercado internacional, elas não terão futuro, nem eficiência e competitividade. Temos que aumentar a produtividade para disputar, e o BNDES tem que ajudar financiando a exportação de empresas brasileiras.”
O posicionamento reflete o esforço necessário para “limpar a imagem”: segundo o atual presidente da República, o banco foi vítima de um intenso processo difamatório durante os quatro últimos anos. Cabe, portanto, uma análise mais precisa do histórico de atuação do BNDES.
Atuação BNDES
Ao analisarmos os dados fornecidos pelo próprio BNDES, – em seu ‘Livro Verde’ – observamos que a mesma instituição foi estratégica no combate aos efeitos da Crise de 2008. Anteriormente a ela, entre 2001 e 2007, há um período de estabilidade, os estoques de crédito do BNDES em relação ao PIB giram em torno de uma taxa média de 5,7%. Já entre 2008 e 2010, a taxa sobe para 8,1%, e se mantém em ritmo de crescimento entre 2011 e 2014, chegando a uma nova média de 10,2%. Após 2014, há uma reversão e um processo de queda aos níveis pré-crise. Outros dados interessantes de serem observados, que também confirmam a tendência de queda do gráfico anterior, é a participação do saldo das operações de financiamento do BNDES como proporção da carteira total de crédito da economia ao longo de pouco mais de duas décadas, desde meados de 2000 até 2021:
Uma das ações notáveis de atuação do BNDES, ocorreu ainda durante o primeiro governo Lula, em 2003, com a assim chamada Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior, que objetivava o aumento da eficiência econômica e o desenvolvimento de tecnologias com maior potencial de competição no comércio internacional por meio do financiamento do BNDES. Em 2007, os setores tiveram um ganho ainda mais expressivo de participação relativa nas liberações do BNDES, quando as políticas econômicas do governo estavam se adaptando para uma fase anticíclica, e criou-se o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que visava incentivar o investimento privado e aumentar o investimento público em infraestrutura. De qualquer modo, em 2011, é substituído pelo Plano Brasil Maior (PBM), com objetivos ligados a investimento, inovação, pequenas empresas e exportação, servindo de base para o futuro e o Plano Nacional de Exportações (2015 até 2018).
Além disso, desde 1991, o BNDES apoiou mais de US$ 96 bilhões em exportações para 45 países, gerando retorno líquido de US$ 4,2 bilhões ao Banco, que representou em média 9,8% do total dos desembolsos entre 2007 e 2017. Os desembolsos representam cerca de 48% do total do orçamento dos projetos e seus financiamentos movimentaram uma rede de 4.044 fornecedores no Brasil, sendo 2.785 micro, pequenas e médias empresas, quais permanecem mais tempo no mercado, demonstrando a efetividade da atuação do BNDES.
Em seu papel, o BNDES financia projetos no exterior que tenham exportações brasileiras de bens e serviços destinados a suas obras. Tem-se, por exemplo, o projeto Cuba, que apresentou benefícios como acesso a um mercado restrito, além de trazer a atuação de aproximadamente 400 empresas brasileiras. As exportações se diferenciam de investimentos no exterior; com os governos estrangeiros / empresas importadoras sendo os responsáveis pelo pagamento das exportações brasileiras, a entrada de divisas subsequentemente viabiliza melhores investimentos no setor produtivo nacional.
Casos mais antigos, como o metrô de Caracas, geram dúvidas na população brasileira, porém, retrata um caso de internacionalização – segundo Eduardo Suplicy, senador de São Paulo na época, “trata-se de um financiamento de US$ 194 milhões para uma construtura brasileira realizar exportações de serviços de engenharia, além de máquinas e equipamentos produzidos no Brasil”, em auxílio à obras que ocorrem no exterior.
Experiência Internacional
No cenário internacional, as grandes economias aproveitam as oportunidades de financiamentos a outros países como meio de estímulo de sua própria dinâmica interna. Ou seja, as operações internacionais do BNDES durante os governos Lula e Dilma seguiram uma prática bem comum no mundo. Seguem três exemplos, do Exim Bank dos EUA, do Banco de Desenvolvimento da China e o UK Export Finance.
U.S. EXIM Bank é o banco norte-americano cujo objetivo basilar é dar apoio às exportações dos EUA. Através de quatro principais produtos financeiros, o EXIM Bank busca auxiliar exportadores de equipamentos e serviços nacionais a realizar vendas internacionais através de financiamentos atrativos aos compradores/países estrangeiros. A título de exemplo de sua atuação, em setembro de 2021 o banco concedeu o prêmio de Deal of the Year à empresa First Solar em Perrysburg, Ohio. O prêmio foi concedido pela venda de exportação dos painéis solares da First Solar de película fina para o projeto de energia solar Zacapa, que está sendo construído pela Kruger Energy – sediada em Montreal –, na Guatemala. A transação foi financiada pelo BankProv em Amesbury, Massachusetts, mas graças ao apoio por uma garantia de empréstimo realizada pelo EXIM Bank. Esse financiamento ajudou a First Solar a ganhar o contrato sobre os concorrentes de painéis solares da China. Assim, a atuação do banco a princípio tornou possível a concorrência e participação no mercado internacional de empresas e serviços nacionais. Aliás, conforme expresso no comunicado, ainda mais importante é considerada essa vantagem financeira, pois em setores tais como de tecnologia de energia limpa, há um domínio por empresas subsidiadas por outras nações, como a China.
Outro importante banco de desenvolvimento a ser mencionado é o China Development Bank. Considerando objetivos centrais de estímulo econômico e busca de novos mercados e oportunidades comerciais, a atuação patente da China como financiadora de projetos é ostensiva. Sua atuação mais frequente recentemente no continente africano é uma das faces dessa realidade. O financiamento de projetos de infraestrutura como a construção do Porto de Águas Profundas de Lekki em Lagos, Nigéria, é representativo enquanto estratégia de financiamento utilizada por muitos dos bancos de desenvolvimento de países que buscam projeção internacional. No caso da Nigéria, além da prestação de serviços pela China na construção do porto, a transformação econômica da região de Lagos paralela à abertura comercial, constituem aspectos benéficos à economia chinesa. Além disso, o acordo como fruto do segundo Fórum do Cinturão e Rota para a Cooperação Internacional são aspectos que reforçam a presença internacional da China.
Por último, o caso do UK Export Finance. O banco de financiamento do Reino Unido, De acordo com seu relatório anual de 2021-2022, dos 545 clientes que receberam apoio do banco, 263 garantiram negócios em algum projeto internacional apoiado pela UKEF. Em março de 2022, por exemplo, o banco realizou um acordo de ajuda através do financiamento de uma nova linha ferroviária elétrica de alta velocidade na Turquia. Conforme expresso pelo próprio site do governo, e seguindo os propósitos basilares do banco em termos de fomento da economia nacional, contratos de grande peso deverão ser realizados a fornecedores ferroviários do Reino Unido como condição pelo apoio do Reino Unido. É esperado que o acordo garanta grandes contratos para empresas britânicas de todos os tamanhos. O estímulo econômico será pretendido através do fornecimento – de empresas do Reino Unido – de linhas ferroviárias, máquinas de ponta, materiais e equipamentos para sistemas de sinalização etc. O acordo, portanto, garante fomento econômico de ambos países e, conforme mencionado no comunicado, através dessa cooperação a participação ativa e relevante dos dois países no mercado financeiro verde foi viabilizada.
Essas e outras experiências internacionais têm em comum que tem como objetivo a contratação de serviços de suas empresas, bem como garantindo a interação e participação de empresas nacionais no comércio exterior. Aquilo que se observa, de fato, é a configuração de aspectos característicos de países de grande porte que, mediante políticas de financiamento com seus parceiros comerciais, estreitam suas relações diplomáticas, potencializam suas respectivas integrações regionais e ao mesmo tempo fortalecem sua própria base industrial e tecnológica.
Desafio do novo governo Lula
O desafio de superar o preconceito e a desinformação que se criou em torno da atuação do BNDES no exterior constitui um problema candente da política econômica brasileira contemporânea. Assim, a construção de relações diplomáticas e comerciais sólidas, acompanhadas de acordos financeiros, como exemplificado no acordo realizado recentemente com a Argentina, agem de forma a recuperar o projeto de integração sul-americana. Ainda que os problemas estruturantes de resgate de soberania nacional e de protagonismo no Cone Sul não sejam resolvidos somente via acordos bilaterais, é preciso iniciar – o quanto antes – a reversão de uma conjuntura de política externa marcadamente isolacionista, para uma política externa mais atuante e menos sujeita à desinformação.
Visando a integração latino-americana e a construção de relações mais próximas entre os países do Mercosul, Lula pretende se posicionar de forma a auxiliar o vizinho, um parceiro histórico e que faz parte do grupo de países mais importantes comercialmente do Brasil. Em particular, a Argentina enfrenta dificuldades com a erosão das suas reservas cambiais. Segundo Gabriel Galípolo, secretário executivo do Ministério da Fazenda, a linha de crédito proposta entre ambos os países irá assegurar o pagamento a empresas brasileiras, garantindo a internacionalização destas e diminuindo as chances de prejuízo pela conversão da moeda Argentina. O BNDES retorna, enfim, a agir em prol de uma inserção ativa do Brasil e assistindo à internacionalização das suas empresas.
Como consequência de ações como as investigações da lava-jato, o BNDES luta para reconstruir-se. Todavia, acontecimentos como os planos de financiamento de gasodutos na Argentina não tiveram boa repercussão nacionalmente, corroborando com a narrativa de financiamento no exterior – como dito popularmente, “dando dinheiro aos estrangeiros” ou pior “aos amigos do governo de plantão”. Isso porque, no debate público brasileiro, ainda impera a noção que medidas nacionais que busquem realizar a entrada de capital doméstico a outros países estariam, por exemplo, diminuindo o nível de receitas disponíveis para se combater a fome da população, do combate ao conflito distributivo que existe no país, entre outros. Ou seja, ainda é bastante predominante a percepção de que a saída de recursos financeiros necessariamente viria a solapar ainda mais nossas contas nacionais.
Em contrapartida a essa percepção, Daniel Scioli, Embaixador no Brasil e candidato a presidente da Argentina – esclarece o interesse pela parceria brasileira, na medida em que representa um conluio de interesses geopolíticos: “A Argentina não veio aqui [Brasil] para ‘pedir dinheiro…seria muito importante que o Brasil com BNDES conseguisse algumas garantias para ajudar a indústria brasileira que abastece a indústria argentina de insumos, matéria-prima e autopeças”.
O posicionamento do Embaixador argentino trata tanto de um exemplo da expressividade dos esforços por soberania nacional, como também da efetividade de sólidas relações econômicas bilaterais. Isso porque a Argentina, hoje gozadora de boas relações com a China, aproveitou dos créditos e swaps concedidos pelo país asiáticos, inclusive em yuan. Com isso, inclusive, o Brasil perdeu mercados para suas exportações de produtos manufaturados. Portanto, cabe à nova administração brasileira repensar a atuação do BNDES na medida em que se preza enquanto uma das principais policy-makers do Cone Sul, e encarar o mercado argentino enquanto importante vetor no estreitamento das relações comerciais com dito parceiro estratégico.
Em paralelo a esse aspecto, é preciso notar a maneira pela qual o financiamento pela integração regional pode sim, no médio/longo prazo, resultar em retornos crescentes de renda. Um exemplo bastante atual de tal situação pode ser demonstrado pela integração energética em torno do gás na região do Cone Sul. Durante sua viagem à Argentina em janeiro passado, o Presidente Luiz Inacio Lula da Silva sugeriu uma participação do BNDES para viabilizar o gasoduto Nestor Kirchner que liga as reservas na Vaca Muerta, Patagonia com os a infraestrutura de gasodutos no norte de Argentina, Bolívia e Brasil.
Isso porque, concretizada a transição energética dos países envolvidos – Brasil, Bolívia e Argentina –, constitui-se um cenário de ampliação da oferta de gás natural, integrada ao ponto de garantir a segurança energética dos países do Cone Sul. Segundo Aloizio Mercadante, em sua posse como diretor do BNDES, o nosso desenvolvimento passa necessariamente pela integração da América Latina e pela parceria com países do Sul Global […] Estamos irrevogavelmente inseridos nesse contexto geográfico e histórico. Nosso destino está, portanto, indissoluvelmente ligado ao destino da nossa região. O Brasil é grande, mas será ainda maior quando atuar em conjunto com seus vizinhos”
Conclusão:
Em suma, os relapsos institucionais da Operação Lava Jato, em seu trato de “criminalização” de setores do próprio poder público, resumiram-se a manobras jurídicas de deslegitimação de políticas econômicas fundamentais. O BNDES, e, em particular sua atuação internacional, foi vítima disso.
Uma recuperação do papel do BNDES é fundamental, não apenas no âmbito da sofisticação produtiva, mas na própria noção de soberania, de capacidade governamental no contorno de gargalos e crises provenientes do âmbito doméstico. Além dos desafios técnicos e financeiros, há ainda o desafio de superar os preconceitos infundados com relação à atuação internacional do banco de desenvolvimento. Há portanto a necessidade de trabalhar com a maior transparência possível e reconstruir uma imagem positiva do banco, reforçando o papel essencial na reindustrialização brasileira e na inserção internacional de forma estratégica.
Com o retorno das atividades de internacionalização e o foco na área industrial, bem como o foco na redução da taxa de juro e o anúncio de novas linhas de crédito, o Brasil tem a oportunidade de, a partir da América do Sul, se inserir novamente em destaque mundial. Cabe ao governo, através de instituições como o BNDES, apresentar uma nova administração que busque retornar o país a sua condição de soberano.