Vini Jr. e o racismo no futebol

14 de junho de 2023


Por Acauã Alexandre José dos Santos; Gabriel N. Silva; Ivan Cersosimo Valverde; Luiza  Martins; Mônica Almeida Peña; Tatiane Anju Watanabe (Imagem: Lucas Figueiredo/CBF)


O preconceito contra o jogador brasileiro Vini Jr. elevou a denúncia do racismo à agenda internacional. Os ataques ao craque do Real Madrid precisam ser compreendidos numa quadra histórica em que a extrema direita volta a ganhar expressão em vários países.


Vinícius Jr., negro, carioca, 22 anos, de origem muito pobre e atleta profissional tem protagonizado manchetes da mídia ao redor do mundo em mais um caso de racismo. É algo recorrente em sua carreira.  O mais recente ataque se deu em uma partida da La Liga, contra o time do Valencia: torcedores gritaram repetidas vezes “mono” (macaco, em espanhol) ao longo do jogo. Torcedores de times adversários chegaram a pendurar num viaduto um boneco negro vestido com a camiseta de Vinícius com uma corda no pescoço.


Na partida em que foi atacado, o jogador/vítima terminou expulso. Seu técnico terminou por defendê-lo e foi indiciado pelo Ministério Público Espanhol por chamar a torcida do Valencia de racista. O clube será o primeiro a pagar uma multa, que já foi reduzida


O que aconteceu com Vinícius é só uma amostra do que ocorre cotidianamente em empresas, shoppings e redes de varejo em boa parte do mundo. Vinícius incomoda não apenas por ser negro, mas bem sucedido. Em três anos, o jogador sofreu dez casos de racismo notificados. 


Até o caso do Valencia, nenhum dos clubes envolvidos recebeu algum tipo de punição. No Brasil, houve tamanha repercussão que foi criada a Lei Municipal Vini Jr., no Rio de Janeiro, que prevê que uma partida com casos de racismo seja imediatamente encerrada. Racismo é crime no Brasil e crime na Espanha. Isso nos faz olhar para a incidência desse fenômeno no futebol como um todo.


Futebol e política


O futebol, como fenômeno de massas, por seu alcance e pela sua aceitação, tem papel de destaque na cena global e na política internacional. Um exemplo de sua utilização como ferramenta política ocorria durante a ditadura de Francisco Franco, na Espanha (1938-1975). Uma de suas características era combater as autonomias regionais, como na Catalunha e no País Basco. As línguas locais foram proibidas. No caso catalão, foi criado o FC Barcelona  para servir de rival ao Real Madrid, time que tinha o próprio Franco como apoiador. Quando as duas equipes se enfrentavam, os estádios tornaram-se válvula de escape para opositores expressarem a contrariedade  com o regime vigente.


O esporte também desempenha um papel significativo nas relações internacionais, sendo um elemento importante na projeção da imagem de cada país no cenário mundial. A seleção brasileira de futebol, por exemplo, é reconhecida como uma das mais vitoriosas e icônicas do esporte, o que lhe confere um status de destaque nas competições internacionais. O dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980) chegou a cunhar a expressão “Pátria de chuteiras” para designar o time. O sucesso do futebol brasileiro foi utilizado várias vezes como ferramenta política, fortalecendo laços entre o Brasil e outros países, por meio da paixão compartilhada pelo esporte.


Um exemplo do uso do futebol como manipulação política se deu na Copa do Mundo de 1970. A visão internacional que a ditadura militar brasileira queria promover era a de uma potência democrática, carnavalesca e esportiva, para encobrir o pior e mais agressivo período da ditadura militar.


O futebol também tem sido utilizado como um instrumento de política cultural. Através dos jogadores brasileiros que atuam em clubes estrangeiros, o Brasil teria a hipotética oportunidade de promover sua cultura, língua e identidade nacional. O talento de Ronaldinho Gaúcho, Pelé e agora Vinicius Junior, atrai a atenção global e gera interesse pelo país, abrindo portas para intercâmbios sociais e econômicos.


No caso específico de Vini Jr, a diplomacia brasileira desempenhou um papel relevante em sua trajetória internacional. O jovem talento revelado pelo Flamengo chamou a atenção do Real Madrid, um dos clubes mais prestigiados e ricos do mundo. Através de negociações comerciais e diplomáticas entre autoridades brasileiras e espanholas, questões relacionadas à transferência do jogador foram discutidas e acertadas.


No caso do racismo, outra força entrou em campo, a diplomacia presidencial. O presidente Lula fez questão de abrir sua entrevista coletiva ao fim da reunião do G-7 em Hiroshima, em 19 de maio. Em seguida, o Itamaraty convocou a embaixadora espanhola no Brasil para apresentar a contrariedade do Brasil com a questão. O ministério desempenhou um papel relevante ao defender os interesses e a dignidade de um cidadão brasileiro no contexto internacional e ao trabalhar para a construção de um ambiente esportivo mais inclusivo e igualitário. 


Racismo estrutural e o futebol


Em uma palestra de dezembro de 2022, o ministro de Direitos Humanos e da Cidadania Silvio Almeida – ele mesmo filho de um jogador de futebol – argumentou que o ato de racismo no futebol precisa ser visto de forma ampla. Trata-se, segundo ele, da estrutura que coloca o elemento ‘raça’ como pressuposto na sociedade. Atos racistas de torcedores possibilitados por uma “organização do futebol que estabeleceu uma divisão social e racial do trabalho, em que os brancos organizam o jogo e os negros jogam”. 


Assim, o racismo, segundo o ministro (2019, p. 15), “é sempre estrutural”. Outras classificações, como o individual e institucional, são manifestações desse racismo que “se desenvolve nas entranhas políticas e econômicas da sociedade”. 


Os ataques que o jogador Vini Jr. sofreu foram manifestações individuais e institucionais de racismo, e que são expressões de uma estrutura social na qual o racismo é o seu modo normal de funcionamento não verbalmente admitido. Considerando que muitos jogadores negros latino-americanos acabam jogando na Europa, é necessário levar em conta os efeitos da colonização europeia para a humanidade. 


A colonização precisou criar a categoria raça para desumanizar os não-europeus, colocando o chamado Velho Mundo como salvaguarda da civilização, acima de povos considerados “selvagens” e passíveis de processos de invasão e escravização. Foi aí que a dicotomia branco X negro surgiu e que, mesmo séculos depois, se manifesta em mas não se limitando em nenhum momento a partidas de futebol. 


Os efeitos coloniais do racismo como forma de controle social  buscam naturalizar a segregação racial, étnica e cultural dos “diferentes”. 


Diante de um sistema desigual de distribuição de poder tenta-se estabelecer um domínio  sobre quais seriam as camadas da população a serem hostilizadas como forma de se aplicarem válvulas de escape para frustrações e obstáculos impostos por esse mesmo sistema. Assim, um negro ou uma negra bem sucedida torna-se algo perturbador para os que geralmente oprime e persegue tais pessoas. 


Assim, Vini Jr., que ascendeu socialmente, ainda está sujeito a ser atacado pela cor da sua pele, e o futebol acabou se tornando o ambiente propício a eventos em que a agressividade assim como a frustração superam os limites da convivência social.


Outros casos recentes de racismo no futebol


O caso do ex-jogador do Flamengo está longe de ser o único. Em abril de 2004, o lateral brasileiro Daniel Alves, em uma cobrança de pênalti durante uma partida entre Barcelona e Village, viu uma banana foi arremessada ao campo. Nesse episódio o jogador contornou a situação comendo a mesma e tendo apoio midiático de muitos artistas que naquele momento  postaram em suas redes  sociais  o  mesmo gesto em apoio ao jogador. Em 2005 Ronaldo Fenômeno arremessou uma garrafa de água na torcedores do Málaga após ter sofrido insultos racistas.   


É preciso recordar também o episódio em 2014 do goleiro Aranha que, em uma partida entre Santos e Grêmio, sofreu ofensas racistas que vinham da arquibancada gremista, na forma de gritos de “macaco”. Nesse caso o árbitro decidiu não interromper a partida.


Neymar, craque do PSG, já foi vítima de preconceitos em inúmeras partidas. Em setembro de 2020, contra o Olympe de Marselha, o zagueiro espanhol Álvaro González chamou o brasileiro de “macaco”. Este reagiu com um tapa na cabeça de González, e acabou expulso de campo. O agressor seguiu no jogo. 


Também, Richarlyson em um amistoso da Seleção Brasileira contra a Tunísia antes da Copa do Mundo do Qatar, após comemorar seu gol, se deparou com um banana jogada por um torcedor local. 


O ponto central de todos os casos aqui expostos é a forma como o futebol é algo influente e em certa medida indissociável do cenário cultural e social da população, e este por sua vez serve de reflexo para o estado da mesma. Tratando agora de sociedades com um elemento racista básico para à sua hierarquia social geral, temos que apontar o quão assimétrica esta relação é mesmo dentro dos grupos que praticam o racismo, pois um cidadão branco não é necessariamente privilegiado do ponto de vista econômico e/ou político apenas por assim o ser; não sendo incomum encontrar pessoas de variadas etnias em situações de pobreza similares dentro de uma estrutura de poder que não às contemplaria de forma espontânea.


Um cidadão que preenche todos os requisitos estéticos para ser parte de uma elite dentro desta estrutura assimétrica mas que não encontra meios para realizar uma ascensão real carrega uma frustração forte por não conseguir participar de um cenário privilegiado; por sua vez, quando um cidadão que geralmente é radicalizado por sua etnia realizá uma grande ascensão econômica e atinge um nível de popularidade e prestígio que outros não conseguem e se nega à abdicar de suas origens se torna um alvo para todo o rancor e hostilidade que os preconceituosos pretendam dar vazão.


Um ato racista germinado e explicitado por uma torcida organizada não assim o é sem uma base ampla de ferramentas políticas e culturais que vão torná-lo algo possível. E esta sociedade por sua vez faz do ato racista uma forma de direcionar à frustração não para uma mudança real, mas para uma agressão injustificável contra quem não faz parte do sistema que perpetua tais atos; falando aqui de jogadores de futebol, mas casos de racismo que ultrapassam o mundo do esporte radicalizando pessoas comuns nunca foram raros à populações historicamente marginalizadas de ex-colônias.


Por fim, sempre vale ressaltar que o racismo não é uma manifestação isolada. No caso espanhol, tem muito a ver com o avanço político da extrema direita, que dobrou sua votação nas eleições municipais, realizadas em maio. O mesmo vale para o Brasil e para outros países. O racismo nunca é um fenômeno isolado, e só persiste exatamente por ter um alcance amplo assim como uma base de apoio sólida para pessoas que aprenderam a manipular o discurso deste tipo. Como apontado, o racismo nos moldes atuais é resultado dos processos de colonização aos quais sofremos, que segmentam a sociedade e criaram divisões profundas que não podem ser ignoradas. Por trás de um ato racista de uma torcida esportiva (independente do esporte neste nível de análise) existem profundas implicações sobre como os agressores se relacionam de maneira nociva com quem está no campo.


Referências:


Almeida, Sílvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

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