11 de julho de 2023
Por Bárbara Fasolin Koboyama, Francisco Zupanovich, Gabrielly Provenzzano da Silva, Geovanna Mirian Raimundo, Melissa Souza Jorge e Rafaela Castilho Miranda (Imagem: Flickr/Gustavo Petro)
O rompimento do Pacto Histórico, ampla coalizão que levou Gustavo Petro à presidência da Colômbia, marca a primeira grande crise do governo eleito em 2022. Em junho, um escândalo envolvendo escutas telefônicas, roubo de dólares e doações de campanha entre funcionários próximos ao chefe do Executivo resultou em turbulência e paralisia nas discussões sobre reformas que o governo tenta emplacar no Congresso. Setores conservadores têm apelado para a judicialização das disputas para derrotar o governo.
O que está acontecendo na Colômbia?
Há algumas semanas, a Colômbia vivencia intensos conflitos na cúpula do governo. No começo de junho, um áudio vazado pela Revista Semana mostra Armando Benedetti, ex-chefe de campanha de Petro e atual embaixador na Venezuela, ameaçando a chefe de Gabinete presidencial Laura Sarabia – também braço direito de Petro. Nos áudios, Benedetti relata não ter recebido ajuda para voltar a Bogotá e ocupar o cargo de Ministro. Diante das revelações, Petro removeu ambos de seu governo enfraquecendo ainda mais a já sensível frente ampla de sua administração. Em suma, o apoio no Congresso, que já não ia bem, se viu ainda mais fragilizado. Reiterando o supracitado, parece um movimento comum na América Latina que dá, outra vez, forças para a (re)ascensão das frentes conservadoras na Colômbia e nos vizinhos latinoamericanos. Vale ressaltar ainda que o vazamento de áudios envolvendo Petro e seus aliados não é novidade, em 2022 em meados da mesma época, áudios vazados atacando a oposição se mostraram cruciais para o resultado das eleições.
Os áudios mostram também Benedetti, que era chefe da campanha no período em questão, como uma peça-chave para esclarecer o financiamento da campanha presidencial de Petro em 2022. As suspeitas são de que haveria um esquema ilegal de financiamento ligado ao narcotráfico do país. Esses vazamentos representam uma crise que pode ter grandes consequências para a política colombiana, especialmente para Gustavo Petro e seus aliados. Fica clara a insatisfação de Benedetti – que esperava mais poder dentro do governo e por isso revelou supostos financiamentos ilegais de campanhas -, que pode se tornar um grande impasse para os interesses do mandatário colombiano e para sua governabilidade, principalmente em relação à aprovação das grandes reformas que compõem o projeto de governo de Petro.
A crise é bem mais profunda do que a troca de acusações entre dois aliados próximos do chefe de Estado. Ela tem origem no conflito de propósitos existentes no interior do Pacto Histórico e se manifestaram com força no final de abril, quando o Congresso derrotou matérias emanadas no palácio de Narino. Alguns partidos conservadores, com assento no gabinete de ministros, romperam com o governo e se somaram à direita na disputa parlamentar. Os projetos em questão eram as reformas da Saúde, Trabalho, Previdência e do Judiciário. Descontente com a situação, Petro literalmente chutou o balde e pediu a renúncia de todos os seus ministros. No final, as substituições atingiram principalmente os titulares ligados ao Partido Liberal, ao Partido Conservador e ao União para o Povo, legendas que passaram a apoiar Petro a partir do segundo turno das eleições de 2022. Foram sete substituições no total.
A lista incluiu José Antonio Ocampo, ex-professor na Universidade de Colúmbia e uma espécie de fiador do governo junto ao mercado internacional. Entre as reformas, a mais sensível era a do sistema de saúde, que visava eliminar intermediários privados nas redes públicas de pronto-atendimento.
Em busca de apoio popular
O passo seguinte de Petro foi sair às ruas. Uma semana depois dos embates no Legislativo, o presidente valeu-se das comemorações do 1º de maio para mostrar força. Diante de uma manifestação de dezenas de milhares de pessoas na praça de Armas, em frente ao palácio, o presidente atacou duramente “as elites e os escravistas” por mais de uma hora, e acusou tais setores de não permitirem avanços sociais, como o fortalecimento da saúde pública, a reforma agrária e uma reforma previdenciária que recupere direitos trabalhistas perdidos nas últimas décadas. Mais do que aplausos, Petro buscava ali apoio popular diante da crise. Nas semanas seguintes, cumpriu roteiro semelhante nas principais cidades do país, buscando manter a iniciativa política e impedir a desestabilização do governo.
No dia 7 de junho, milhares de colombianos foram às ruas em ao menos 200 cidades, incluindo as principais do país e a capital Bogotá, para apoiar o governo em manifestações convocadas por movimentos e partidos populares. Petro e a vice-presidenta, Francia Márquez, participaram de ato na Praça de Bolívar, a maior da capital. Em seu discurso, o presidente buscou vincular as reformas de seu governo ao projeto político apresentado por ele em sua campanha e voltou a denunciar uma possível tentativa de golpe. Segundo ele, a direita busca “construir desconfiança nas bases populares com um primeiro objetivo de travar as reformas e ajoelhar o Congresso diante do grande capital”. O passo seguinte seria “fazer o mesmo que no Peru, ou seja, levar o presidente à prisão e trocá-lo por um que não foi eleito”.
No entanto, uma pesquisa divulgada na semana anterior aos atos revela que a popularidade do governo Petro caiu. Segundo a Invamer, a aprovação da gestão no começo de junho era de apenas 33,8%, número baixo em relação aos 50% registrados em novembro de 2022. A desaprovação bateu 59,4% e 61,8% dos pesquisados manifestaram oposição à reforma da Saúde, após intensa campanha oposicionista contra as mudanças.
No dia 20 de junho, as principais cidades do país registraram atos de manifestantes de direita, organizados por partidos contrários ao governo, em resposta aos atos do início de junho.
É bem possível que os áudios de conversas entre aliados próximos seja o lance que a direita e a extrema direita estejam dando para desgastar a administração pública, em meio ao enfrentamento. Vale destacar que vazamentos desenfreados de intercepções telefônicas de figuras públicas não são incomuns no país. Constituem práticas conhecidas com o nome de chuzadas. A isso se somam acusações de que a campanha vitoriosa recebeu financiamentos do narcotráfico.
Enfrentamento na Justiça
O Ministério Público da Colômbia anunciou a abertura de investigações. Petro respondeu dizendo que o governo não cometeu nenhuma irregularidade e que não aceitaria ser “chantageado”. A situação entre o Executivo e o MP já é tensa por conta da ligação entre o ferrenho opositor de Petro e atual Procurador-geral da República, Francisco Barbosa, e o ex-presidente de direita Iván Duque, que o indicou para o cargo. Além disso, o Conselho Nacional Eleitoral também abriu uma investigação para analisar possíveis irregularidades no financiamento da campanha de Petro. Benedetti e Sarabia, protagonistas dos áudios, deverão se apresentar perante o órgão em 13 de julho para prestar esclarecimentos.
Com o escândalo das chuzadas, o Congresso suspendeu temporariamente as discussões sobre as reformas trabalhista, previdenciária e da saúde, a partir de 5 de junho. A decisão foi tomada pelo presidente da Câmara dos Deputados, David Racero, membro do Lista de la Decência, agremiação de centroesquerda que integra o Pacto Histórico. Em entrevista para a W Radio, Racero explicou que a suspensão dos trabalhos se deu por conta da turbulência política e da falta de quorum para prosseguir os debates.
A decisão não foi bem recebida por Petro. No Twitter, o presidente compartilhou um manifesto assinado por mais de 400 intelectuais, políticos e líderes de esquerda de 35 países que denuncia a articulação de um suposto “golpe brando” contra o governo colombiano. A carta argumenta que há uma campanha coordenada por parte do “poder institucional das agências reguladoras, conglomerados de mídia e [do] Poder Judiciário do país”, que teria como objetivo “proteger os interesses dos poderes tradicionais colombianos contra reformas populares que aumentariam os salários, melhorariam os cuidados de saúde, protegeriam o meio ambiente e levariam a ‘paz total’ ao país”.
Jogo de forças
Em 19 de junho de 2022, Gustavo Petro foi eleito presidente da república, com 50,44% dos votos. O ex-guerrilheiro chegou ao poder em eleição acirrada sob o apoio de uma frente ampla que buscava combater a ascensão da extrema direita, assim como ocorreu em outros países da América Latina, como o Brasil e o Chile. Apesar de se mostrar funcional para a vitória eleitoral, a coalizão exibe seus limites ao reunir partidos e figuras políticas com diferentes interesses na sociedade. Em julho de 2023, sete meses após a posse, a falta de aliados no Congresso parece se concretizar como o “bicho-papão” da atual gestão do atual governo colombiano.
Em termos históricos, o governo Petro é um divisor de águas na política colombiana. Ele enfrenta o desafio de ser o primeiro presidente de esquerda de um país desigual e tradicionalmente governado pela direita.
Essa esquerda renovada entrou em cena com o intuito de mudar os hábitos políticos do país. A coalizão vencedora afirma ter um sério compromisso com a paz, expresso na continuidade da implementação do acordo com as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e outros grupos armados que percorrem o espectro da esquerda à direita. Além disso, a luta contra o narcotráfico, tema central da política colombiana, está sendo trabalhada a partir de uma postura voltada para a prevenção, e não para a proibição ou para a fracassada proposta norte-americana da “guerra contra às drogas’’.
Por último, o governo alega buscar uma reforma fiscal que permita levar uma parte da riqueza de quem mais tem a quem carece de segurança alimentar, saúde e educação. Os três eixos serão atravessados pelo olhar da defesa ambiental.
Judicialização da política
A atual conjuntura da Colômbia demonstra uma mudança nos âmbitos internos e externos do país. As propostas e políticas do primeiro governo de esquerda do país enfrentam desafios advindos do descontentamento das elites, do alinhamento histórico com os Estados Unidos e da própria estrutura do Estado.
A configuração política nos países latino-americanos, marcada pelas consequências da adesão de alguns países às políticas neoliberais por um período e da influência estadunidense no continente, se apresenta suscetível às guerras judiciais. Segundo o livro El lawfare: golpes de Estado en nombre de la ley (2021), faz parte da história regional que a tentativa de se construir uma sociedade voltada aos interesses latino-americanos resulte em um ataque por parte das elites locais em função dos interesses estadunidenses. A política de controle da região já passou por diversos mecanismos, desde o financiamento de ditaduras ao Consenso de Washington (1989), e, atualmente, sendo instaurada com o lawfare.
A judicialização é um fenômeno em que questões e disputas políticas são levadas ao âmbito judicial para serem resolvidas. Isso se dá quando atores políticos – partidos, governantes, legisladores ou cidadãos – recorrem ao poder judiciário para resolver questões que normalmente seriam tratadas no âmbito estritamente político. O processo pode ter impactos decisivos na democracia, no Estado de Direito e nas relações entre os poderes políticos e judiciais.
Os casos podem abranger diversas áreas, como direitos civis, direitos humanos, questões eleitorais, políticas públicas, disputas constitucionais e corrupção, etc., por diferentes motivos. Seriam os casos de impasses políticos ou se alguma lacuna nas instituições, o que leva os atores a recorrerem ao judiciário como um último recurso para resolver controvérsias. Ou então, servir de estratégia política para obter decisões favoráveis ou como uma forma de controle do poder político.
Nesse sentido, desenha-se um paralelo com o termo “lawfare”, vinda do inglês law, “direito”, e warfare, “guerra”. Cristiano Zanin Martins, agora ministro do STF brasileiro, define o termo como “uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo”. Já o jurista Lenio Streck define a prática como a “construção fraudulenta do raciocínio jurídico para perseguir fins politicamente orientados”. Ainda de acordo com Arantxa Tirado Sánchez, o lawfare “utiliza a lei para neutralizar ou eliminar o inimigo político em favor de uma reconfiguração geopolítica” (SÁNCHEZ, 2021. p.48. Tradução nossa).
Esse mecanismo atua supostamente dentro do âmbito democrático, porém é uma estratégia que enfraquece a democracia e o Estado de Direito, pois questiona a legitimidade judicial e a confiança do povo no sistema. “Neste sentido, o lawfare é uma ferramenta mais ao alcance dos que mandam no mundo, ajudados por seus operadores políticos, econômicos ou judiciais, para seguir perpetuando seus privilégios em uma ordem econômica injusta e desigual.” (SÁNCHEZ, 2021. p.33. Tradução nossa). O lawfare se articula através do poder midiático, judiciário e econômico para garantir seus objetivos.
O caso mais marcante desse fenômeno no continente ocorreu no Brasil contra a ex-presidenta, Dilma Rousseff, e o atual presidente, Lula. O mesmo mecanismo também ocorreu em outros países, como na Argentina contra a vice-presidenta, Cristina Kirchner. Todos foram posteriormente inocentados. Os processos se mostram a partir de motivações duvidosas visto que as alegações apresentaram incerto respaldo jurídico e apelam para a construção de uma imagem contrária à moral conservadora através da mídia.
Em outras palavras, esses casos estão relacionados ao descontentamento das elites locais e ao interesse dos Estados Unidos em manter a região sob o controle de seu poder hegemônico. A desconfiança do povo em relação ao sistema eleitoral e a desmotivação em pertencer a uma democracia participativa fazem parte da estratégia de se implementar a agenda neoliberal, acabar com os direitos conquistados pelo povo e a perda ou diminuição da autonomia dos países do Sul Global.
A eleição de um governo progressista ou de esquerda demonstra uma escolha do povo colombiano e uma intenção de mudança de rumos. No caso atual, é um caminho que sofre uma série de empecilhos, assim como ocorre nos outros países da América Latina, como os casos recentes do Chile e do Peru.
O governo Petro foi eleito com uma coalizão de frente ampla, porém os interesses divergentes entre a esquerda e direita levaram a dificuldade na governabilidade e de seguir com os projetos de reforma. O caso ocorre a partir de acusações que giram em torno do financiamento da campanha e uma suposta ligação com o narcotráfico, ambos temas que se relacionam com a ideia de corrupção e que se assemelham às acusações em outros casos de lawfare no continente em um momento de tentativa de descredibilizar as políticas progressistas.
Referências:
ZANIN MARTINS, Cristiano. ZANIN MARTINS, Valesta Teixeira. VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019. p. 21.
SÁNCHEZ, Arantxa Tirado. El lawfare: golpes de Estado en nombre de la ley. Madrid: Ediciones Akal, S. A., 2021
STRECK, Lenio Luiz. Enciclopédia do golpe – Vol. 1. Bauru: Canal 6, 2017. p. 119.