O motim do grupo Wagner e o futuro da presença russa na África

11 de julho de 2023

Por Wilson Gregorio da Silva, Gustavo Alves Daniel, Carlos Sanches, Mohammed Nadir e Flávio Thales (Imagem: Pixabay)

O grupo armado Wagner, uma organização paramilitar russa que tem atraído atenção internacional devido às suas atividades em várias regiões de conflito. A origem do grupo remonta à primeira metade da década de 2010, quando surgiram relatos de mercenários russos envolvidos em conflitos na Rússia e Ucrânia. Acredita-se que o Grupo Wagner seja composto principalmente por ex-militares russos altamente treinados e há suspeitas de que tenha ligações com o governo russo. O grupo esteve envolvido em vários conflitos e operações militares em todo o mundo, incluindo Síria, Líbia, República Centro-Africana, Sudão e Moçambique. Quanto à liderança atual, é desafiador obter informações precisas, mas acredita-se que Dmitry Valerievich Utkin tenha mantido algum nível de controle e liderança dentro do grupo e um dos principais interlocutores do grupo é Yevgeny Prigozhin, um oligarca com laços estreitos com Vladimir Putin.


Grupo Wagner: sua origem

O grupo armado Wagner, também conhecido como Tropa Wagner, Grupo Wagner ou simplesmente Wagner, é uma organização paramilitar russa que atraiu considerável atenção internacional nas últimas décadas devido às suas atividades em várias regiões de conflito e mais recentemente no conflito entre Rússia e Ucrânia. Embora seja difícil obter informações precisas sobre o grupo devido à sua natureza clandestina, existem algumas teorias e relatos que fornecem “insights” sobre sua origem, nome, fundador e líderes atuais.

Antes de esboçar sobre a gênese da milícia Wagner, há que realçar que este modelo de privatização começou a ganhar forma desde o fim da segunda guerra mundial. A necessidade de operações clandestinas para derrubar governos e eliminar adversários foi muito usado pelos serviços de inteligência tanto no Ocidente como no bloco soviético. 

No caso da milícia Wagner, a sua origem remonta à primeira metade da década de 2010, quando surgiram relatos de mercenários russos envolvidos em conflitos na Rússia e Ucrânia em relação a Criméia. Acredita-se que o Grupo Wagner seja composto principalmente por ex-militares russos altamente treinados. Embora seja considerado um grupo privado, há suspeitas de que tenha ligações com o governo russo e, possivelmente, com a empresa militar privada (PMC) chamada “Academi”, anteriormente conhecida como “Blackwater”, fato esse que é confirmado pelo intercept. 

Os primeiros relatos sobre as atividades do Grupo Wagner surgiram em 2014, durante o conflito na Ucrânia, onde mercenários russos foram avistados lutando ao lado das forças separatistas pró-Rússia. Esses mercenários foram relatados como sendo altamente disciplinados e bem equipados, o que indicava uma organização militar por trás deles.

Desde então, o Grupo Wagner esteve envolvido em vários conflitos e operações militares em todo o mundo. Eles foram relatados como atuantes na Síria, onde estiveram envolvidos em combates ao lado das forças do governo sírio, apoiado pela Rússia. Também há relatos de suas atividades na Líbia, República Centro-Africana, Sudão e Moçambique, onde têm fornecido suporte militar e segurança para interesses russos.

Quanto à origem do nome “Wagner” atribuído ao grupo armado, existem algumas controvérsias e mitos. Alguns especulam que o nome pode ser uma referência ao compositor alemão Richard Wagner, famoso por suas óperas épicas que retratam eventos históricos e mitológicos, que também foi muito admirado pelo ditador alemão Adolf Hitler. Outra teoria sugere que o nome possa ser uma referência a Dmitry Valerievich Utkin, um oficial das forças especiais do Departamento Central de Inteligência russo, onde serviu como tenente-coronel e é acusado de ser o suposto fundador do grupo, cujo codinome seria “Wagner”. No entanto, é importante ressaltar que essas teorias são especulações e não há confirmação oficial sobre a origem do nome.

Em termos de liderança atual, é desafiador obter informações precisas. Acredita-se que Dmitry Valerievich Utkin tenha mantido algum nível de controle e liderança dentro do grupo, mas, no entanto, um dos principais interlocutores do grupo é Yevgeny Prigozhin, um oligarca com laços estreitos com Vladimir Putin. Prigozhin, também conhecido como chefe de Putin por causa de um lucrativo negócio de bufê que saciava os gostos de Putin, há muito atua como procurador da Rússia para ajudar Moscou a atingir seus objetivos de segurança nacional. Além disso, alguns especialistas acreditam que o grupo esteja ligado ao Kremlin e possa estar sob influência direta do governo russo, embora isso também seja motivo de debate.

Desde sua fundação, o Grupo Armado Wagner esteve envolvido em diversas atuações no continente africano. Uma das primeiras operações conhecidas foi na República Centro-Africana, onde o grupo foi contratado para fornecer segurança para empresas de mineração russas. O envolvimento do Grupo Wagner na República Centro-Africana se estendeu para além da segurança, e há relatos de que membros do grupo participaram de confrontos armados contra grupos rebeldes no país.

Outra atuação notória do Grupo Armado Wagner na África ocorreu na Líbia, durante o conflito que se intensificou após a queda do regime de Muammar Gaddafi em 2011. O grupo foi acusado de lutar ao lado das forças do marechal Khalifa Haftar, um dos principais líderes da oposição ao governo de Trípoli reconhecido internacionalmente. Os mercenários do Grupo Wagner teriam sido contratados para apoiar as forças de Haftar em suas ofensivas contra grupos rebeldes e milícias rivais.

Vale ressaltar que o Grupo Armado Wagner tem sido objeto de controvérsias e críticas por sua falta de transparência, suspeitas de violações dos direitos humanos e possível ligação com o governo russo. Embora o governo russo negue oficialmente qualquer envolvimento com o grupo, há relatos e evidências que sugerem uma relação próxima entre ambos.


Grupo Wagner e sua atuação no continente africano

O Grupo Wagner atua a serviço do Estado russo na garantia de seus interesses internacionais, com seu avanço no continente africano, essa presença pode ser notada em alguns países, como na República Centro-Africana, Mali, Angola e entre outros. Por exemplo, o presidente da República Centro-Africana, Faustin Touadera, assinou um acordo militar com a Rússia com o intuito de enviar instrutores militares para auxiliarem no treinamento do seu exército. Além desses instrutores, mais de mil mercenários do Grupo Wagner também foram para o país, principalmente para assegurar o controle das vastas minas de diamante e ouro locais, segundo um ex-combatente. Adicionalmente, o grupo opera com variadas violações aos direitos humanos e crimes de guerra, como tortura, despejos forçados e estupros segundo uma investigação da ONU, executando ordens para o Estado russo sem opor a opinião pública.

Dessa forma, como são combatentes “privados”, o Estado russo pode facilmente se desvencilhar dos atos desses mercenários por conta da sua falta de legislação ao mesmo tempo que garante seus interesses, como no caso citado acima da República Centro-Africana em que um russo foi nomeado conselheiro de segurança nacional do presidente.


Que futuro para a Rússia na África

A relutância de países africanos em adotar posições que condenem a Guerra na Ucrânia expressa a relação de longa data dessas nações com a  Federação Russa. Esses laços remontam ao período soviético e atualmente passam por um fortalecimento conduzido pelo governo russo que promoverá no presente mês de Julho a segunda edição do Fórum Rússia-África, elaborado com o objetivo ampliar a cooperação do país eslavo com o continente africano em diversos setores, sendo o bélico um deles.

As sanções oriundas do bloco de países ocidentais que apoiam a Ucrânia fizeram com que a Rússia buscasse novas parcerias estratégicas na Ásia, América Latina e África, com vistas a suprir demandas comerciais abruptamente interrompidas pelos antigos parceiros.

Talvez o principal elemento da atual conjuntura seja o fator da segurança alimentar, uma vez que o país eslavo produz cada vez mais trigo, que por sua vez ruma para o Egito, Algeria, Líbia, Sudão, Quênia, entre outros. Esses grãos são fundamentais para uma gama variada de estados que sofrem com as mudanças climáticas e carecem de condições logísticas para garantirem a própria subsistência. O volume de alimento exportado pela Rússia para esses lugares indica uma manutenção dessa relação.

A questão energética também ganha fôlego à medida que a Europa Ocidental corta suas fontes de abastecimento com os russos. Em contrapartida, a África torna-se um destino receptivo para carregamentos desses combustíveis com expressivo aumento de 50% nas aquisições de gasolina. Outro avanço significativo se dá no âmbito da energia nuclear, liderado pela companhia estatal Rosatom, com investimentos da ordem de 76 e 30 bilhões de dólares em usinas na África do Sul e Egito, respectivamente.

A presença através do Grupo Wagner no continente tende a manter-se em virtude da instabilidade presente em muitos países africanos. A Guerra Civil em curso na Líbia parecia ganhar um desfecho em 2020 quando as forças de Khalifa Haftar, apoiadas pela companhia militar privada, cercaram Trípoli. Contudo, a Turquia promoveu uma intervenção que prolongou a polarização naquele país. Do outro lado da fronteira, o Sudão caminha para um impasse bélico que pode culminar em grave conflito civil entre as forças de Abdel Fattah al-Burhan e o grupo paramilitar de Mohamed Hamdan Dagalo, este último com acusações de receber suporte do Wagner. Esse auxílio militar atinge seu ápice no caso da República Centro-Africana, onde o presidente Faustin-Archange Touadéra mantém-se no poder com ajuda fundamental das tropas paramilitares russas que afastaram diversas forças rebeldes dos entornos da capital Bangui, e também no Mali onde ocupam o espaço deixado por batalhões franceses que se retiraram ainda em 2022.

Em vista dos aspectos e das circunstâncias observadas, tudo leva a crer que a presença russa em África permanecerá e talvez aumente substancialmente a depender das condições que se apresentem a curto e médio prazo.


Quais as possibilidades do continente africano nesta segunda Guerra Fria?

Deve dizer que as consequências devastadoras da crise ucraniana continuam a sublinhar a necessidade de concretizar urgentemente o projeto emblemático da União Africana de “Silenciar as Armas até 2020” numa região onde os conflitos e as suas consequências, embora pouco divulgados pelos meios de comunicação social internacionais, têm sido vastos, graves e crescentes em intensidade e custo. Em 2020, mais de 20 000 africanos foram mortos em conflitos violentos, um número quase dez vezes superior ao registado há uma década. Na República Democrática do Congo (RDC), onde vários milhões de pessoas foram mortas em conflitos violentos nas últimas décadas, mais de 2 400 foram vítimas de guerra só em 2020.

Incapazes de conter a taxa crescente de conflitos de alta intensidade e de mortes relacionadas com conflitos em África, os líderes do continente prolongaram o prazo para a paz por mais uma década, mudando o objetivo para “Silenciar as Armas até 2030”. No entanto, o cumprimento deste novo prazo continua a ser um desafio, a menos que a região adote vigorosamente uma abordagem continental à promoção da segurança que reforce a apropriação tanto da segurança nacional como da agenda de desenvolvimento para uma paz e prosperidade duradouras.

A securitização do desenvolvimento – a subordinação dos objetivos de crescimento e desenvolvimento às prioridades de segurança – não conseguiu garantir a segurança e apenas prejudicou o desenvolvimento. No fundo, a externalização da segurança interna não conseguiu trazer a paz e, em vez disso, permitiu que as potências estrangeiras se imiscuíssem em insurreições internas e prolongassem os conflitos. Estes conflitos prejudicam a integração regional e o desenvolvimento económico, como é hoje evidente na Líbia e no Mali, Congo que têm sido palcos de guerra há mais de uma década. 

Recentemente, o aumento dramático dos conflitos de alta intensidade e das mortes relacionadas com os conflitos na região coincidiu com a expansão das redes terroristas transnacionais, que têm sido sustentadas por um excesso de combatentes estrangeiros/ dos Jihadistas itinerantes (31 soldados das forças de Burkina Faso mortos por jihadistas  em 27 de junho) e pela proliferação de bases militares estrangeiras no meio de realinhamentos geopolíticos e tensões crescentes. Se a crise ucraniana tenha revigorado as tensões Este-oeste que definiram a segunda metade do século passado, ela provocou na África, o surgimento de novas alianças geopolíticas moldadas pela triangulação que dominou a primeira Guerra Fria. 

De fato, esse realinhamento geopolítico tem estado em pleno andamento em África, onde as guerras por procuração estão a grassar – incluindo na Etiópia, que acolhe a sede da União Africana – à medida que as potências concorrentes disputam o controlo dos recursos naturais e das rotas comerciais estratégicas. Este braço de ferro entre superpotências colocou não apenas o mundo no caminho de uma nova Guerra Fria, mas sobretudo fez com que África emergisse novamente como uma arena para o exercício das suas rivalidades.

De acordo com as estimativas oficiais mais recentes, África alberga pelo menos 47 postos avançados estrangeiros/bases militares, sendo que os Estados Unidos controlam a maior parte, seguidos pela antiga potência colonial França. Tanto a China como o Japão decidiram estabelecer as suas primeiras bases militares no estrangeiro desde a Segunda Guerra Mundial no Djibuti, que é o único país do mundo a acolher postos avançados americanos e chineses.

As cicatrizes da primeira Guerra Fria – que custou milhões de vidas africanas e minou a integração regional e o desenvolvimento económico, ainda estão frescas e a região não se pode dar ao luxo de ser vítima de uma segunda.

Ora uma segunda Guerra Fria, na esteira da proliferação de bases militares estrangeiras e da externalização da segurança nacional, prejudicaria igualmente os esforços para desfragmentar as economias africanas e acelerar o processo de transformação estrutural para concretizar o potencial do Acordo de Comércio Livre Continental Africano (AfCFTA), que tem sido apontado como um fator de mudança. 

Desse modo, podemos dizer que África tem uma tarefa hercúlea num sistema internacional instável e agressivo para com os países vulneráveis como na África.  Os decisores políticos devem fazer tudo para reduzir o envolvimento estrangeiro na prossecução dos seus objetivos de segurança e desenvolvimento. A União Africana deve mostrar força e união para prevenir os conflitos e sobretudo se armar com uma abordagem regional da segurança nacional que maximize os ganhos económicos e de segurança. Mas, para atingir estes objetivos, os decisores políticos têm primeiro de se empenhar em resolver os fatores internos de conflito. Estes estão geralmente ligados a défices de governação, desigualdade horizontal enraizada e instituições fracas – fatores que frequentemente anunciam a interferência estrangeira.

 

Referências:

“What is the Wagner mercenary group led by Yevgeny Prigozhin?” (https://www.independent.co.uk/news/world/europe/wagner-fighters-mercenary-group-russia-coup-b2363762.html)

“The Wagner Group: A Russian Symphony of Profit and Politics” (https://www.thecipherbrief.com/column_article/the-wagner-group-a-russian-symphony-of-profit-and-politics)

“Inside the Wagner Group: The Criminals and Contractors Fighting Putin’s War“ (https://www.newsweek.com/inside-wagner-group-criminals-contractors-putins-war-1770392)

“The Wagner Group and its imprint in Africa” (https://www.intelligencefusion.co.uk/insights/resources/article/wagner-group-in-africa/)

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