Desigualdade de gênero e futebol feminino na América Latina

09 de agosto de 2023

 

Por Bárbara Fasolin Koboyama, Gabrielly Provenzzano da Silva,  Melissa Souza Jorge e Rafaela Castilho Miranda (Imagem:Reprodução/Agência Brasil)

 

A história do futebol feminino é repleta de disputas na América Latina, onde a paixão pelo futebol é característica de muitos países. Entender os avanços e retrocessos das mulheres nessa modalidade significa compreender as desigualdades de gênero que permeiam o esporte.

 

O Brasil foi eliminado logo na etapa inicial da Copa do Mundo Feminina, na Austrália, mas vale a pena esquadrinhar a trajetória de afirmação das mulheres numa modalidade até poucas décadas tido como eminentemente masculina.

 

As seleções que representaram a América Latina no certame foram Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica e Panamá. Quase todas foram eliminadas, sendo que a seleção colombiana é a equipe latino-americana com melhor desempenho na disputa. O campeonato começou em julho e, de lá para cá, emplacou uma série de debates sobre as disparidades de salários, investimentos, patrocínios e cobertura midiática entre as categorias masculina e feminina do futebol. Entender os desafios das mulheres nessa modalidade significa compreender as desigualdades de gênero que permeiam o esporte como um todo.

 

O futebol feminino no mundo

 

A história do futebol feminino é repleta de lutas, retrocessos e grandes conquistas. As mulheres enfrentaram com resistência o preconceito desde o final do século XIX. Foram inicialmente banidas dos esportes, inclusive do futebol, pelo que era chamado de “sua condição natural”. Com o tempo, a adesão feminina abriu caminho para o início do reconhecimento e popularidade da modalidade.

 

A British Ladies Football Club é apontada como a primeira equipe feminina de futebol, fundada na Inglaterra em 1894. O clube foi fundado por Nettie Honeyball, uma ativista dos direitos das mulheres comprometida a mostrar que elas poderiam ocupar espaços importantes na sociedade. Sua primeira partida oficial aconteceu no ano seguinte, contando um público de cerca de 10 mil pessoas que foram vaiar as jogadoras em campo, e grande parte do público foi embora antes do término da partida. Além disso, a imprensa lançou suas críticas, em que Manchester Guardian escreveu ”não acho que as partidas de futebol feminino vão atrair multidões”.

 

O clube pioneiro surgiu com o propósito de promover o esporte entre as mulheres, desafiando as normas sociais da época. Ele não apenas proporcionou oportunidades esportivas, mas também se tornou um espaço de resistência e conscientização sobre as questões de gênero. Ao se formar e competir, as mulheres associadas ao clube enfrentaram preconceitos e barreiras, contribuindo para a promoção da igualdade de gênero.

 

No século XX, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) levou os homens às trincheiras e reduziu a força de trabalho na Europa. Nesse contexto, as mulheres passaram a trabalhar nas fábricas e formar suas próprias equipes de futebol, algo comum para os trabalhadores homens da época. 

 

Com o fim da guerra, em 1921, os campeonatos de futebol masculinos retornaram e as equipes compostas por mulheres não foram bem vistas. Em 5 de dezembro daquele ano, a Federação Inglesa de Futebol baniu a prática do futebol feminino nos estádios do país.

 

Em 1966, a Copa do Mundo foi realizada na Inglaterra e o interesse pelo futebol cresceu. A Federação Inglesa voltou atrás na decisão de 1921 e oficializou o apoio ao futebol feminino no país em 1969. Em 1971, a União das Associações Europeias de Futebol, a UEFA, propagou aos seus respectivos parceiros a gestão e promoção do futebol feminino, que se consolidou na Europa nos anos seguintes.

 

Somente em 1988 a FIFA organizou seu Torneio Experimental de Futebol Feminino na China, a primeira competição internacional no gênero. Na ocasião, as jogadoras não receberam sequer suporte da entidade, e utilizaram sobras de uniformes masculinos. Já em 1991 aconteceu a primeira Copa do Mundo Feminina, que contribuiu para o início da popularização da categoria e a quebra de tabus.

 

A partir de 1996, o futebol feminino fez sua estreia nas Olimpíadas, quando o esporte foi incluído nos Jogos de Atlanta, realizados nos Estados Unidos. A seleção brasileira alcançou a quarta colocação na competição, enquanto o país sede conquistou a medalha de ouro.

 

Em 2009 a novidade chega ao nosso continente, através da Copa Libertadores da América de Futebol Feminino. O Santos FC, na época com Marta e Cristiane, sagrou-se campeão. No mesmo momento, Marta era eleita pela quarta vez a melhor jogadora do mundo. 

 

Cristiane, nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016, tornou-se a maior artilheira na história dos Jogos, e virou recordista na artilharia olímpica entre homens e mulheres.

 

Léa Campos foi a primeira mulher árbitra de futebol profissional do mundo reconhecida pela FIFA. A mineira de Abaeté é graduada em Educação Física e Jornalismo, e atualmente mora nos Estados Unidos, fez parte do quadro da FIFA entre os anos de 1971 e 1974.

 

A brasileira Edina Alves Batista foi a primeira mulher a ser árbitra de um jogo masculino profissional da FIFA. A profissional atuou na partida entre Al Duhail e Ulsan Hyundai FC, pelo Mundial de Clubes da FIFA 2020. A também brasileira, a auxiliar Neuza Back compôs, ao lado da argentina Mariana de Almeida, o trio 100% feminino foi um marco no esporte.

 

Os esforços significativos foram feitos para promover a igualdade de gênero no esporte, e muitas federações de futebol começaram a investir mais recursos em programas de desenvolvimento e infraestrutura para o futebol feminino, ainda tendo um longo percurso a percorrer.  

 

O futebol feminino na América Latina

 

O futebol é um elemento de pertencimento em âmbitos nacionais e regionais. Apesar disso, o futebol feminino ainda sofre com estigmas e misoginia, como o entendimento do esporte como algo masculino e a dificuldade em reconhecer o interesse e participação de mulheres. De acordo com Gabriela Ardila, citada no artigo América Latina llega al Mundial Femenino 2023 entre pendientes y promesas de Manuela Cano para France 24, o futebol é representativo da ideia de nação nos países latino-americanos e que entendem esse conceito através de um ideal masculino e de valores que não são permitidos às mulheres.

 

A história do futebol feminino na América Latina passa por situações de proibições e constrangimentos, segundo Claudia Yaneth Martínez Mina em seu artigo Historias y encrucijadas del fútbol femenino en América Latina na revista Nueva Sociedad. No caso da Argentina e do Chile na metade do século XX, era comum comentários que colocassem o interesse da mulher pelo futebol voltado à atenção masculina. Em ambos os países o preconceito e a pressão da mídia e da sociedade foram suficientes para censurar o futebol feminino e moldar um papel estereotipado da mulher latino-americana.

 

No Brasil, a prática foi proibida por quase 40 anos, sob o artigo 54 do Decreto de Lei 3199, que afirmava que “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”. A lei foi implementada em 1941, durante o governo Vargas, e foi detalhada em relação ao futebol (em todas as modalidades do esporte, pólo-aquático, pólo, rugby, halterofilismo e baseball) em 1965, durante a ditadura militar. Em 1979 a lei foi revogada e apenas em 1983 o futebol feminino foi regulamentado.

 

O artigo Futebol feminino: os pretextos usados para proibir a prática no Brasil, de Julia Braun, explica que a justificativa da lei era que deveria, supostamente, proteger a saúde da mulher e da maternidade. No entanto, é citado o argumento de Brenda Elsey, autora do livro Futbolera: A History of Women and Sports in Latin America, de que na época já era comprovado que se tratava de uma justificativa falsa e que o propósito da lei era controlar as mulheres em seu tempo livre, seus corpos e suas expressões. As mulheres brasileiras resistiram a esse período e várias buscaram meios de seguir com a prática do futebol e de outros esportes, como se vestir de homem e jogar à noite em lugares privados.

 

As mudanças começaram a ocorrer no cenário global na segunda metade da década de 1980, de acordo com Mina (2023). Entre essas conquistas, pode-se destacar a participação da equipe brasileira na Copa Mundial Feminina de Futebol em 1991, a criação da Copa América Feminina organizada pela Conmebol e o desenvolvimento das seleções femininas nos países latino-americanos. As conquistas mais recentes envolvem a exigência da Conmebol, em 2016, em que os clubes de futebol masculino tenham uma rama feminina para participar da Libertadores e da Copa Sulamericana. A autora ressalta que “nos países nos quais os coletivos feministas tem sido mais fortes se tem produzido, consequentemente, não apenas maiores conquistas, mas também aberturas de espaços nos quais as mulheres têm desafiado a lógica da masculinização do futebol” e cada país realizou diferentes políticas sociais, assim obtendo resultados diferentes no incentivo da participação e permanência feminina no esporte.

 

Os desafios enfrentados pelas mulheres latino-americanas no futebol (assim como também em outros esportes) compreende não somente a profissionalização das jogadoras como a assistência, patrocinadores, igualdade salarial e mesmos direitos que a categoria masculina dos esportes. A questão se demonstra ainda mais profunda, pois é uma reivindicação de espaços que foram estruturados por ideais masculinos como padrão e a inserção de mulheres abrange a ressignificação de elementos presentes na cultura latino-americana.

 

O futebol feminino no Brasil

 

O futebol feminino já é jogado no Brasil há mais de 100 anos. Mas foi só no ano de 1983 que surgiram os primeiros times profissionais no Brasil: o Radar, no Rio de Janeiro, e o Saad, de São Paulo. Na década de 1990, times grandes começaram a aparecer no cenário feminino, como o Corinthians, o São Paulo e o Santos. O primeiro Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino organizado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) aconteceu no ano de 2013.

 

Nos últimos anos, o futebol feminino experimentou um avanço importante no reconhecimento e valorização no Brasil. Anteriormente negligenciado e relegado a um papel secundário em comparação com o futebol masculino, o cenário vem aos poucos ganhando relevância e espaço no meio esportivo. A ascensão de talentosas jogadoras, como Marta, Formiga e outras, conquistando títulos importantes e alcançando marcos históricos em competições internacionais, tem sido fundamental para aumentar a visibilidade da modalidade.

 

A primeira seleção feminina foi convocada pela CBF no ano de 1988. Durante quase 40 anos, contados a partir de 1941, as mulheres foram impedidas de jogar futebol no Brasil, sob o argumento de que o esporte era incompatível com as condições de sua natureza.

 

A abertura só aconteceu em 1979, em um contexto de aumento das liberdades individuais, nos últimos anos do regime militar. A regulamentação da atividade profissional veio em 1983, pautada pela luta das jogadoras, mas somente em 1988, há 30 anos, é que a Seleção Feminina de Futebol teve a sua primeira convocação oficializada. Uma curiosidade é que a seleção foi composta apenas por jogadoras do supracitado time Radar. O clube cedeu 16 atletas e elas conseguiram vencer a competição que foram disputar, a Women’s Cup of Spain, realizada na Espanha. Aliás, esse foi o primeiro título internacional conquistado pela nossa Seleção.

 

Depois disso, a Seleção Brasileira ganhou outras medalhas em Pan Americano (o futebol feminino foi incluído como modalidade apenas em 1999 e o Brasil passou a competir somente em 2003), Olimpíadas e Copas do Mundo. A Copa de 2019, realizada na França, foi um marco para a modalidade. Isso porque foi a primeira vez em que houve uma transmissão na maior televisão aberta no Brasil e foi a mais comprada e assistida do mundo. Os brasileiros realmente vibraram e torceram pelo time.

 

Além das conquistas individuais das atletas, o investimento e o apoio de clubes e patrocinadores também têm sido cruciais para o crescimento do futebol feminino no país. A criação de competições mais estruturadas e a transmissão de jogos em canais de televisão têm permitido que mais pessoas acompanhem e se apaixonem pelo esporte. A resposta positiva do público tem encorajado o governo e as entidades esportivas a promoverem políticas mais inclusivas e igualitárias, fomentando a participação de mulheres e meninas no futebol em todas as categorias.

 

Historicamente, o futebol feminino no Brasil sofre pela forma como tem sido tratado pela mídia, carecendo de apoio, organização e inserção midiática, apesar de já ter conquistado grandes avanços como listado acima. Existe grande disparidade na cobertura entre o futebol feminino e masculino. Enquanto as competições masculinas recebem ampla exibição durante todo o ano, as partidas e os campeonatos femininos são muitas vezes relegados a horários menos privilegiados e menos visibilidade. 

 

Ainda há poucas mulheres ocupando cargos de destaque na cobertura do futebol feminino, o que pode influenciar a forma como as histórias são contadas e perpetuar estereótipos. A inclusão de mais vozes femininas na mídia esportiva é fundamental para garantir uma cobertura mais justa, competitiva e empática.

 

Os meios de comunicação também desempenham um papel na construção de ídolos e modelos para as jovens jogadoras. Quando os atletas são celebrados e admirados publicamente, isso pode inspirar a próxima geração a sonhar alto e perseguir seus objetivos no futebol. É importante que jornalistas, emissoras e plataformas de mídia continuem a investir na cobertura do esporte, destacando suas conquistas e desafios. Desta forma, é essencial que haja uma mudança significativa no enfoque midiático, com mais investimentos, igualdade de oportunidades e representatividade feminina, a fim de romper com as barreiras e preconceitos que ainda cercam o futebol feminino no país.

 

A luta por respeitos justos, condições de treinamento adequadas e mais investimento em infraestrutura são pautas urgentes. Entretanto, é inegável que a crescente popularidade e os engajamentos da sociedade estão pavimentando o caminho para um futuro promissor para o futebol feminino no país.

 

Igualdade e inclusão 

 

No mundo dos esportes, a resistência que as mulheres enfrentam não é exclusividade do futebol. Ao Jornal da USP, Katia Rubio, professora da Escola de Educação Física e Esportes daquela Universidade e membro da Academia Olímpica Brasileira, explica que o esporte, enquanto campo privilegiado de competição e demonstração de força, se constituiu desde os seus primórdios em atividade essencialmente masculina. Em Atenas, o berço dos Jogos Olímpicos na Antiguidade, as mulheres foram privadas não só de participar, mas também de assistir aos jogos – um dos reflexos de não serem consideradas cidadãs de plenos direitos. 

 

Rubio enfatiza justamente que, ao longo da história, a resistência à presença feminina no esporte é, entre outras coisas, produto de legislações excludentes. Ela lembra, por exemplo, que em 1896, na primeira edição das Olimpíadas Modernas, as mulheres foram novamente proibidas de participar do evento. 

 

O que fica evidente é que o acesso e a progressão na carreira esportiva por parte das mulheres esbarra em questões estruturais da sociedade, como o machismo, que permeiam as organizações esportivas. Quem afirma isso é Renato Francisco Rodrigues Marques, professor de Sociologia Esportiva da Escola de Educação Física e Esporte em Ribeirão Preto (EEFERP) da USP, para Ana Beatriz Fogaça, do Jornal da USP. Para Larissa Rafaella Galatti, professora do curso de Ciências do Esporte na Unicamp, há cerca de 20% de participação feminina e 80% masculina nas disciplinas. Em sua avaliação sobre o curso em que atua,  é possível identificar que homens costumam ter experiências positivas em ambientes mais favoráveis e mulheres enfrentam um ambiente que nem sempre é acolhedor. A menor presença de mulheres em cursos de Esporte, por sua vez, gera possibilidades reduzidas de atuação em cargos de gestão, como treinadoras e árbitras.

 

Nas competições, outras disparidades entre modalidades masculinas e femininas envolvem salários, investimentos e patrocínios e cobertura midiática. Segundo a pesquisa Women in Sport Report 2021, realizada pelo YouGov Sport, 6 a cada 10 pessoas (62%) no mundo vêem alguma forma de desigualdade no esporte. 

 

Para falar em remuneração: Rafaella Zanellato, atleta olímpica e técnica do time de rugby feminino da Faculdade Cásper Líbero, contou à revista Factual 900 que, por anos, o piso de diferença entre mulheres e homens com salários altos era superior a R$10 mil, em valores de 2021. Também em entrevista à Factual 900, a medalhista olímpica Mayra Aguiar, do Judô, diz que viveu na pele a realidade dos baixos investimentos governamentais e patrocínios nas categorias femininas no início de sua trajetória, por volta de 2007. Vale ressaltar que a Copa do Mundo Feminina chegou à televisão aberta somente em 2023, enquanto a masculina é um evento ostensivamente coberto pela mídia desde seu início, nos anos 1930.

 

Diante das desigualdades, em 2019 foi criada a campanha Go Equal em prol da igualdade de gênero no esporte. A embaixadora do movimento é a jogadora Marta e, segundo ela, “as mulheres jogam futebol da mesma forma que os homens”, portanto, “não há motivo para não receberem o devido reconhecimento”. A busca por equidade ecoa em outras modalidades esportivas.

 

A inclusão das mulheres no esporte é, ainda, um compromisso vinculado à Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU. O esporte é visto como uma plataforma fundamental para a promoção da igualdade de gênero, o quinto Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da Agenda. 

 

Segundo o relatório Igualdade e inclusão da mulher no esporte: mapeamento das organizações esportivas nacionais e internacionais, da ONU Mulheres, em parceria com Comitê Olímpico Brasileiro, “incentivar a financiar projetos de apoio à atuação e ao desenvolvimento de meninas e mulheres no esporte é uma recomendação alinhada com o debate global sobre governança e políticas públicas porque o esporte é capaz de oferecer um espaço seguro para a criação de modelos de referência inspiradores, impulsionar igualdade de gênero e fomentar o empoderamento feminino na sociedade em geral”.

 

Dentre outras coisas, o que fica da Copa do Mundo Feminina de 2023 é a torcida para que o esporte seja cada vez mais um espaço político a ser disputado pelas mulheres.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *