19 de outubro de 2023
Por Emanuela Almeida, Fabíola Lara de Oliveira, Flávia Mitake Neiva e Giovanna Mendes Carvalho (Imagem: Pixabay)
Mergulhamos nas complexas relações entre a China e o Uruguai, explorando as tensões que surgem no contexto do Mercosul. Analisamos as ambições uruguaias de firmar um acordo de livre-comércio com a China e como isso desafia as políticas do Mercosul. Além disso, discute as barreiras enfrentadas nas negociações e as tentativas do presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, de lidar com essa questão delicada. Este artigo oferece uma visão detalhada das dinâmicas geopolíticas em jogo e suas implicações para o futuro do Mercosul.
Desde a virada do século XX, a China tem adquirido importância crescente nas relações econômicas do Mercosul, superando a posição dos Estados Unidos em 2009 como principal destino das exportações extrabloco e, no ano seguinte, como principal origem das importações. O estreitamento das relações chinesas com o bloco não se limitou à esfera econômica, mas abrangeu também a geopolítica. No cenário de ascensão da China no sistema internacional e de enfraquecimento da hegemonia estadunidense na América Latina, a China conseguiu atrair vários países para a Iniciativa do Cinturão e da Rota (ICR), que tem a adesão de mais de 140 países no mundo. Entre os países da América Latina e Caribe, 21 nações aderiram, entre elas Argentina, Uruguai e Venezuela, membros do Mercosul. A ICR envolve projetos de infraestrutura de transporte, energia, telecomunicações e tecnologia visando fomentar a integração econômica entre os países.
Entretanto, apesar da cooperação existente entre China e países do Mercosul, recentemente as relações bilaterais do país com os membros do bloco foram foco de tensões, dada a intenção do Uruguai de firmar um acordo de livre comércio com a China que potencialmente viola as políticas do Mercosul.
No início do mês de setembro de 2021, Luis Lacalle Pou, presidente do Uruguai, anunciou publicamente a intenção de firmar com a China um acordo de livre-comércio que eliminaria tarifas e cotas para importação entre Uruguai e China. Desde 2013, a China tem sido o maior parceiro comercial do Uruguai, o que impulsionou a venda de soja, carne e produtos derivados de madeira. O interesse do Uruguai com o acordo é obter maior acesso ao mercado chinês. A carne, produto mais exportado pelo Uruguai à China (em 2021, cerca de 41% das exportações uruguaias ao país foram de carne), por exemplo, é tarifada em 12% na China, mais que o dobro do que se aplica a carne australiana e muito distante da isenção tarifária sobre a carne da Nova Zelândia. Contudo, o Mercosul apresenta-se como empecilho para que o país possa celebrar um Tratado de Livre-Comércio (TLC) com a China.
O Mercosul é um tratado no qual é determinado que acordos bilaterais sejam realizados em bloco, ou seja, com todos os demais países da organização, o que limita, então, as possibilidades dos membros de realizarem, sozinhos, acordos bilaterais com outros países. Isso se dá conforme o artigo 1° da Resolução do Conselho do Mercado Comum 32/00: “o compromisso dos Estados Partes do MERCOSUL de negociar de forma conjunta acordos de natureza comercial com terceiros países ou blocos de países extra-zona nos quais se outorguem preferências tarifárias”. Tal disposição foi feita para impedir a violação da cláusula de Tarifa Externa Comum (TEC), que corresponde ao conjunto de tarifas de importações aplicáveis para países fora do bloco. Assim, pelas regras do acordo, não é permitido ao Uruguai (e todo membro da organização) violar a TEC em favor da China. Para qualquer tipo de flexibilização da TEC seria necessária, então, a celebração de um acordo da China com o Mercosul como bloco.
Apesar disso, o Uruguai tem insistido na possibilidade do acordo. Em julho de 2022, o país voltou a afirmar a possibilidade do TLC com a China e a tentar iniciar negociações. Além disso, no final desse mesmo ano, Lacalle Pou adiantou sua intenção de formalizar um pedido de adesão do Uruguai ao Acordo Transpacífico, também de livre-comércio, o que violaria a norma do Mercosul. Embora o presidente uruguaio tenha sido advertido por países do Mercosul sobre as consequências da entrada do país no acordo , em dezembro o termo de adesão já havia sido formalizado.
Nesse contexto de tensões entre o Mercosul e o Uruguai, o presidente Lula, já nas primeiras ações do seu novo mandato, tentou remediar o impasse a partir da reafirmação da importância do bloco como mecanismo de integração do Cone Sul. Nos seus primeiros compromissos oficiais, o presidente priorizou uma visita ao Uruguai, onde se encontrou com o presidente Lacalle Pou como uma tentativa de dissuadir o acordo bilateral Uruguai-China. Na época, Lula afirmou que priorizaria as negociações Mercosul-UE para, posteriormente, focar na cooperação do bloco com a China. Apesar das tentativas de dissuasão, o Uruguai tem se mostrado convicto em consagrar a cooperação econômica com o governo chinês, o que acabou influenciando diretamente na sua decisão de não assinar a declaração da 62ª Cúpula do Mercosul. Na mesma ocasião do encontro, Lula se viu novamente obrigado a tentar dispersar esse acordo unilateral ao sugerir a priorização de acordos multilaterais do Mercosul com novas frentes de negociação, o que também incluiria a China.
As promessas de Lula, contudo, esbarram nas dificuldades para avançar negociações em outras frentes. O Acordo Mercosul-UE encontra-se paralisado pela contínua ausência de consenso entre ambas as partes, para se chegar a um entendimento sobre o acordo. Em relação ao estabelecimento de um TLC com a China, por meio do Mercosul, há várias barreiras, como o fato de que o Paraguai não mantém relações diplomáticas com a China, mas com Taiwan. Além disso, o Brasil, que possui interesses comerciais relacionados à indústria, bem como a Argentina, teriam imensas dificuldades de construir consenso em seus países a respeito de uma abertura de mercado para favorecer a China, contra a qual os setores industriais de ambos os países têm nutrido reclamações ao longo das últimas décadas.
Na ausência dos avanços desejados pelo Uruguai nas negociações de livre-comércio com UE e China, caberá aos outros países do Mercosul, em especial aos seus membros mais poderosos – Brasil e Argentina – oferecer novas possibilidades de desenvolvimento ao Uruguai, visando dissuadir a flexibilização do projeto de integração regional. Ainda, criar condições para o consenso mútuo, em relação a importância das vantagens oferecidas pelo projeto de integração sul-americano. Tal esforço demanda a superação de objetivos individuais e de curto prazo, o fortalecimento de uma mentalidade coletiva frente aos novos desafios do sistema internacional e o reconhecimento dos benefícios que uma relação em bloco com a China pode oferecer. Por fim, caberia, por parte do Brasil principalmente, reforçar aos chineses a necessidade de continuidade do projeto mercosulino na região e as consequências a respeito de uma desintegração causada pelo acordo com o Uruguai, uma vez que isso poderia enfraquecer a própria atuação internacional da América do Sul e, por conseguinte, os prospectos para um mundo multipolar.