18 de dezembro de 2023
Por Bruno Fabricio Alcebino da Silva
“Depois de Pedro Páramo não houve outro livro de Juan Rulfo. Ele foi, sim, o mais silencioso dos escritores latino-americanos. Um gigante que preferiu seguir a lição extrema que indica que quando não há nada que efetivamente valha a pena ser dito, vale mais o silêncio. O que ele havia dito antes já foi suficiente para permanecer valendo a pena para sempre. Em silêncio, como correspondente”. (Eric Nepomuceno)
O México, com sua rica tapeçaria histórica e os desafios contemporâneos que enfrenta, encontra na obra magistral de Juan Rulfo, “Pedro Páramo”, um espelho que reflete não apenas o passado, mas também as sombras que persistem no presente. Ao mergulhar nas páginas desse romance, somos guiados por uma narrativa intricada que desenterra não apenas os vestígios da Revolução Mexicana, mas também os resquícios dessas mudanças nos dilemas políticos, sociais e econômicos do México moderno.
Ao abrir as páginas de “Pedro Páramo”, somos transportados para um período crucial da história mexicana, mas, surpreendentemente, encontramos ressonâncias inegáveis com os desafios contemporâneos do México. Lançado em 1955, este clássico atemporal de Juan Rulfo não apenas nos presenteia com uma narrativa magistral, mas também nos oferece um espelho para compreender as complexidades da Revolução Mexicana e suas sombras persistentes no presente.
Rulfo habilmente desenha um cenário pós-revolucionário, no qual as promessas de transformação social, que ecoaram durante a Revolução Mexicana (1910-1917), se dissiparam. O país que emerge nas páginas do romance é marcado por cicatrizes, onde a violência, desigualdade e desilusão substituíram a esperança inicial de uma nação renovada.
O protagonista, Juan Preciado, é uma representação simbólica da busca coletiva por identidade nacional. Sua jornada em busca de seu pai, Pedro Páramo, expressa a inquietação de uma sociedade que procura respostas após os tumultuosos anos do início do século XX, nas palavras do narrador: “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo”. Esse desejo de compreender as raízes e a herança nacional se multiplica em tensões contemporâneas do México, e a persistente busca por estabilidade política e identidade cultural persiste.
Ao conectarmos as linhas do romance às notícias atuais, para além do tempo de Rulfo, é fascinante observar como o México do século XXI ainda está imerso em uma busca constante por estabilidade e continuidade política. As “maiores e mais complexas eleições disputadas” virão em 2024 e sintetizam a constante evolução do cenário político, enquanto o país tenta navegar por águas turbulentas em busca de uma liderança que possa guiar efetivamente.
Assim como “Pedro Páramo” explora as ramificações da revolução, o México contemporâneo enfrenta uma miríade de desafios. A pandemia, inflação, violência do crime organizado, crise energética e a polarização política são apenas algumas das tormentas atuais, que ecoam nas páginas do romance de forma alegórica, reforçando a ideia de que a história é cíclica e que o país ainda está em busca de soluções para dilemas persistentes, ou seja, ainda preso nos dilemas do labirinto da solidão.
“Na boca do inferno”
A trama de Rulfo se desenrola em um ambiente onde as promessas de mudanças sociais profundas, alimentadas pela revolução, foram engolidas pela inércia e pela desilusão. Elas transcendem limites temporais. O autor pinta um retrato desolador de um México que, após o tumulto revolucionário, que se estende até o governo Cárdenas (1934-40) se viu imerso em uma realidade desértica, como a paisagem do livro. Os personagens que habitam esse universo ficcional tornam-se metáforas vívidas de um país que poderia ter sido, proporcionando uma crítica penetrante à transformação social prometida e não realizada.
Ao seguir Juan Preciado em sua busca pelo enigmático Pedro Páramo, os leitores são confrontados com a desconstrução das expectativas pós-revolucionárias. A Revolução Mexicana (1910-1917) foi um conflito social e político que buscou reformas agrárias, justiça social e participação política. Iniciada por uma série de revoltas contra o regime ditatorial de Porfírio Díaz, a revolução envolveu diversas facções e líderes, incluindo Emiliano Zapata e Pancho Villa. O movimento resultou em mudanças significativas na estrutura política e social do México, incluindo a promulgação da Constituição de 1917, que estabeleceu princípios de justiça social e direitos trabalhistas. No entanto, a revolução também gerou instabilidade e conflitos prolongados. A estrutura fragmentada da narrativa, intercalando vozes e tempos, espelha a fragmentação da esperança e a complexidade dos destinos entrelaçados dos personagens.
A paisagem desolada retratada Rulfo não é apenas geográfica, mas também emocional e espiritual. Os personagens fantasmas que povoam Comala, a cidade fictícia e abandonada, simbolizam não apenas os mortos, mas também os vestígios da história, das promessas não cumpridas e dos desejos não realizados. Cada encontro de Juan Preciado com os fantasmas do passado revela camadas mais profundas da tragédia coletiva vivida por uma nação em busca de uma identidade perdida.
O calor escaldante de Comala, mencionado por um personagem no início da jornada de Juan Preciado, serve como uma metáfora implacável da intensidade e do peso da história que assombra a cidade. “Quando chegarmos a Comala, o senhor vai ver o que é calor forte. Aquilo fica em cima das brasas da terra, bem na boca do inferno. Digo eu que muitos dos que morrem lá, quando chegam ao inferno voltam para buscar um cobertor”. Essas palavras revelam não apenas o clima abrasador da cidade, mas também a ideia de um sofrimento persistente que transcende a vida terrena.
O calor de Comala não é apenas climático; é uma força que queima as almas dos habitantes, refletindo o fogo interno das promessas não cumpridas e das aspirações frustradas.
A genialidade de Rulfo reside não apenas na construção magistral de uma narrativa complexa, mas também na habilidade de proporcionar uma reflexão profunda sobre a condição humana e as complexidades de uma nação em transformação. “Pedro Páramo” não é apenas uma obra-prima da literatura latino-americana; é um microcosmo literário que captura aspectos essenciais de uma nação, suas cicatrizes históricas e suas aspirações frustradas. Uma leitura indispensável para quem busca compreender não apenas a história do México, mas também as nuances universais da experiência humana. Nas palavras de Valeria Luiselli, professora de Harvard, ao New York Times, Pedro Páramo “é a história de todas as revoluções: dos sem-terra contra os latifundiários, dos despossuídos contra os poderosos. É uma história de usurpação, extração e violência sexual. De roubar terras, colonizá-las e explorá-las e ao seu povo. Em outras palavras, é uma história de construção nacional nas Américas”.
Dilemas atuais
O México contemporâneo enfrenta desafios monumentais que, de maneira intrigante, ecoam na obra de Juan Rulfo. A conexão entre a narrativa literária e a realidade política, social e econômica do país oferece uma perspectiva única para analisar criticamente os dilemas atuais.
Pandemia e insegurança sanitária
A pandemia de Covid-19 emergiu como uma metáfora moderna para as inquietudes crônicas do México. Da mesma forma como as promessas de mudança social em “Pedro Páramo” foram engolidas pela inércia e desilusão, a pandemia representou uma ameaça global que desafiou os esforços mexicanos em direção à estabilidade e progresso. A busca por uma identidade nacional é novamente confrontada, desta vez pelo vírus, evidenciando a fragilidade das estruturas sociais. Na pandemia todas as cidades são fantasmas, quase inabitadas. A pandemia chocou-se de frente contra a vida gregária.
Inflação e dificuldades econômicas
A inflação emerge como impulso irresoluto das complexidades econômicas que assolam o México contemporâneo. Paralelamente, Rulfo oferece uma visão penetrante das esperanças frustradas de prosperidade. Ao explorar esses contextos entrelaçados, torna-se evidente que ambos revelam uma batalha constante do México em alcançar uma estabilidade econômica duradoura.
A inflação, como indicativo econômico, torna-se um espelho das flutuações e desafios enfrentados pelo país. Seus impactos se estendem para além dos números, permeando a vida cotidiana dos cidadãos e influenciando diretamente o poder de compra e a qualidade de vida. A decisão unânime do Banco de México (Banxico) de manter os juros em 11,25% ao ano, em dezembro de 2023, apesar do relaxamento monetário em outras economias da América Latina, reflete um cenário desafiador de inflação no país. O comunicado do Banxico destaca um cenário ainda “desafiador” de inflação, apesar de alguns progressos recentes.
Ambos os contextos – a obra e o presente – convergem para questionar a eficácia das políticas econômicas adotadas. A dificuldade persistente do México – e do continente – em alcançar estabilidade econômica duradoura sugere um desafio contínuo na formulação e implementação de estratégias eficazes. O comunicado do Banxico reforça o compromisso em buscar a estabilidade de preços, destacando a importância de monitorar as pressões inflacionárias enquanto busca o retorno do índice de preços à meta de 3%.
Violência do crime organizado
Em “Pedro Páramo”, Rulfo desenha um retrato sombrio de uma sociedade assolada pela violência, onde a ordem social é moldada pelas ações brutais e viscerais de Pedro Páramo. As consequências desse ambiente permeiam não apenas os eventos da narrativa, mas também as vidas e psiques dos personagens, criando um tecido intricado de desespero, medo e desconfiança. Esse enredo revela uma compreensão profunda das ramificações sociais e individuais da violência, oferecendo uma lente crítica para examinar os desafios contemporâneos do México.
Na atualidade, as manchetes continuam a ser dominadas por relatos de violência ligada ao crime organizado, evidenciando uma continuidade histórica de desafios sociais que transcendem décadas e que primam pela ausência do Estado. Assim como os personagens da obra de Rulfo são moldados e afetados pelas circunstâncias violentas que os cercam, a sociedade mexicana contemporânea também sente os impactos profundos desse fenômeno. O tecido social é marcado por cicatrizes resultantes da violência do crime organizado, refletindo não apenas em estatísticas frias, mas também nas histórias humanas de perda, trauma e resistência.
Ao considerar a interseção entre a literatura e a realidade, torna-se evidente que a luta contra a violência do crime organizado não é apenas um desafio isolado, mas sim um componente intrínseco de uma narrativa mais ampla. A continuidade histórica desses desafios sociais aponta para a necessidade de abordagens abrangentes, que vão além das respostas reativas para abordar as raízes sistêmicas do problema. Somente dessa forma, a sociedade mexicana poderá começar a romper com a sinistra continuidade que conecta os horrores descritos por Rulfo às complexidades enfrentadas nas manchetes atuais.
Mesmo quando a segurança pública está nas mãos dos militares, os números seguem muito altos. No período entre 2018 e setembro de 2022 houve 112.250 homicídios, e nessa equação as mortes em 2022 representam uma redução de 10,3% em relação a 2021. Mas há um dado alarmante: o número de pessoas desaparecidas e não localizadas neste período supera 30 mil. Só em 2022, calcula-se que foram quase 11 mil, e se cruzarmos com o baixo número de pessoas localizadas, poderíamos concluir que a maioria estão mortas. Esses dados reforçam a urgência de enfrentar os desafios sociais, políticos e econômicos de frente, exigindo não apenas soluções imediatas, mas também uma análise crítica e a implementação de políticas públicas que abordem as causas subjacentes desses problemas persistentes.
Crise energética e polarização política
A crise energética e os desafios políticos no México para o ano de 2024 desenham um cenário complexo que impacta diretamente a vida dos cidadãos e o futuro da nação. Um dos elementos cruciais dessa narrativa é o aumento dos preços dos combustíveis, uma variável internacional que, quando não subsidiada, resulta em realocações no gasto público. Isso implica que determinados setores econômicos ou sociais podem perder com essa transferência de recursos entre diferentes áreas, evidenciando um dilema econômico que se reflete nas políticas governamentais.
A influência da crise energética se intensifica em meio ao contexto das eleições presidenciais do próximo ano. Os preços da gasolina e seus derivados oscilaram constantemente em 2023, tornando-se uma variável crítica nesse cenário político. O desafio reside em conciliar as demandas econômicas com as pressões políticas, enquanto os candidatos oficiais se preparam para uma sucessão presidencial que já se desenha marcada por campanhas antecipadas e mudanças nas estruturas eleitorais, inclusive com o despontar de duas mulheres como favoritas para o pleito, a ex-prefeita da Cidade do México, Claudia Sheinbaum e a senadora indígena, Xóchitl Gálvez.
A seleção do candidato oficialista e os desdobramentos políticos que envolvem o Instituto Nacional Eleitoral adicionam uma camada de complexidade ao ambiente democrático do México. As reformas inconstitucionais e as manobras dos aspirantes oficialistas criam incertezas em relação à integridade do processo eleitoral, colocando em risco a construção democrática de quatro décadas.
As eleições locais de 2022 ofereceram um vislumbre do que pode ocorrer em 2024, especialmente diante da intervenção do crime organizado, que já demonstrou influência nas eleições anteriores. O impacto desse fenômeno se traduz em mudanças significativas na representação política, com o partido Morena conquistando território em grande parte do país, enquanto a oposição enfrenta desafios de unidade e confiabilidade.
Os projetos do governo de Andrés Manuel López Obrador, conhecido como o governo da Quarta Transformação, são centrais nesse cenário. O aeroporto Santa Lucia, a refinaria Dos Bocas e o Trem Maia são projetos controversos que geram debates constitucionais e midiáticos. O aeroporto, inaugurado no verão passado, enfrenta desafios de utilidade, enquanto a refinaria, contrariando as tendências globais de energia limpa, busca atingir a soberania energética. A construção de ferrovias na selva do sudeste do México, criticada por grupos ambientais, destaca as tensões entre desenvolvimento econômico e sustentabilidade ambiental.
A polarização política acentua as dificuldades na construção de consensos para políticas públicas de longo prazo, adicionando um elemento de instabilidade a um cenário já complicado para a governabilidade, embora seja algo natural em democracias estabelecidas. Nesse contexto, o desafio vai além das questões energéticas e econômicas, envolvendo a necessidade de encontrar soluções políticas que promovam a estabilidade e atendam às demandas e expectativas da sociedade mexicana.
Los desiertos de la Tierra
Ao entrelaçar a narrativa de “Pedro Páramo” ou “Los desiertos de la Tierra”, um dos títulos iniciais do romance, com a realidade contemporânea do México, somos convidados a uma reflexão profunda sobre a continuidade da história e a resiliência de seus desafios. A Revolução Mexicana não é um capítulo encerrado, mas uma narrativa que persiste, transformando-se e ecoando nas complexidades políticas, sociais e econômicas que moldam o destino do México. “Pedro Páramo” não é apenas um livro do passado, mas um guia reflexivo que ilumina os caminhos do presente, instigando-nos a compreender e confrontar os dilemas que moldam a nação mexicana.