Por Giorgio Romano
Publicado originalmente no Jornal dos Economistas
No governo Jair Bolsonaro, identifica-se – grosso modo – três grupos. Primeiro, sob a liderança de Paulo Guedes, a turma dos ultraliberais. Sabe-se o que querem: há uma clara continuidade da guinada política que teve início com o afastamento da presidenta Dilma Rousseff. A grande dúvida é sua capacidade de articular apoios no Congresso Nacional para avançar na pauta. O núcleo duro dessa turma é formado pelo setor financeiro e pelo agronegócio, junto com os interesses do capital internacional produtivo, à procura de oportunidades para aquisições de ativos rentáveis.
Uma segunda turma é bem mais complexa, heterodoxa-conservadora no que tange a valores, com ideias curiosas e de difícil operacionalização. Está presente no primeiro escalão dos ministérios de Relações Exteriores, da Educação e no da Mulher, Família e Direitos Humanos. Trata-se de um grupo que pode atrapalhar a agenda econômica, inclusive na tramitação dos projetos no Congresso. A orientação do ministro Ernesto Araújo (Itamaraty) de apostar em um pan-nacionalismo liderado pelos EUA, aludindo a obscuro caráter judaico-cristão, também deve agravar este quadro.
Finalmente, o terceiro grupo é composto por um exército de militares de alto escalão. Surpreendentemente ou não, este setor não parece defender nenhum projeto específico. Pode-se identificar a defesa dos interesses corporativos e, sobretudo, a ocupação de espaços para recuperar o prestígio da caserna. De resto, o que há é uma aderência quase cega à agenda ultraliberal, sem a menor preocupação com a venda de ativos estratégicos para empresas multi-nacionais, como o caso da Embraer, da Eletrobras ou das reservas do pré-sal. *
Na visão do superministro de Economia, Paulo Guedes, um bem-sucedido processo de privatização, abertura comercial e retirada do Estado da economia é suficiente para o Brasil ingressar em vigoroso processo de crescimento. Essa agenda não foi bem o motivo da vitória eleitoral do Bolsonaro, que mobilizou votos com a promessa de fazer uma faxina geral contra a corrupção, a violência e tudo que está aí, tá ok? Aliás, o próprio Bolsonaro aderiu tardiamente à agenda ultraliberal.
Há de se observar, portanto, que o Brasil se diferencia radicalmente daqueles outros governos no mundo identificados com a nova direita, conservadora e populista, com os quais Bolsonaro supostamente se identifica. Os governos dos EUA, Itália e Hungria, em particular, e as forças políticas de direita em outros países, como a Frente Nacional na França, defendem um nacionalismo econômico. Matteo Salvini, vice-primeiro-ministro da Itália, por exemplo, briga com a União Europeia para poder aumentar o déficit em prol de investimentos públicos. Tais governos questionam a autonomia de seus bancos centrais, defendem medidas protecionistas e discutem restrições para a compra de empresas nacionais consideradas estratégicas por oligopólios internacionais. Essa pauta não é somente da direita populista. No mundo inteiro há, pelo bem e pelo mal, uma reavaliação da crença nos benefícios de uma globalização liberal.
O governo da Alemanha acaba de publicar sua “política industrial 2030”, na qual consta o compromisso de proteger determinados setores de aquisições e da concorrência estrangeira. O ressurgimento de uma aproximação da concorrência entre oligopólios pelos mercados com a disputa interestatal pelo poder tem como pano de fundo o surgimento da China, país no qual as empresas estatais e privadas operam dentro de uma orientação centralizada, visando o desenvolvimento nacional. Evidência disso é plano chinês “Made in China 2025”, que projeta a busca da liderança em setores de ponta, como a robótica e a inteligência artificial, e que alimentou reações fortes dos norte-americanos e europeus.
É justamente neste contexto internacional que o governo brasileiro começou a falar em abertura comercial unilateral, ou seja, sem negociar contrapartidas dos parceiros de negócios, para desespero de vários setores econômicos, que no atacado podem aplaudir a bandeira liberal, mas no varejo percebem as ameaças.
A combinação do conservadorismo populista com a agenda ultraliberal é, portanto, não somente uma anomalia, mas suas apostas na liberalização e abertura vão na contramão da tendência mundial. Assim, projetam-se uma série de contradições que o governo precisará enfrentar, sobretudo a partir da importação de pautas dos EUA que são alheias à tradição e aos interesses brasileiros. Tome-se, por exemplo, as declarações de desconfiança e até hostilidade com relação aos investimentos chineses por parte do ministro Ernesto Araújo e do próprio presidente. Ora, o Brasil, ao contrário dos EUA, não está em disputa com este país, nem por interesses geopolíticos na Ásia Pacífica, nem – infelizmente – na disputa por domínio das tecnologias de ponta. A China é, desde 2009, o maior parceiro comercial do Brasil. Mais recentemente, os investimentos externos diretos e financeiros do gigante asiático ganharam um peso importante também. Assim, o Brasil, preocupado que deveria estar em retomar um processo de crescimento com desenvolvimento sustentável, não tem por que tomar partido entre norte-americanos e chineses.
Curiosamente, justo o agronegócio, parte do núcleo duro que apoio a Bolsonaro, tem fortes interesses na China. Há todo motivo para o Brasil desenvolver uma política mais estratégica diante das aquisições por parte de capitais internacionais, mas isso vale para todos, não só para aqueles de origem chinesa. Paulo Guedes quer o contrário: abertura irrestrita. Os chineses são bem-vindos para investir em refinarias, participar das concessões de infraestrutura e, quem sabe até, na Usina Nuclear de Angra III.
O Brasil está na presidência dos Brics neste ano. Deverá hospedar sua cúpula em novembro. Em 2014, a última vez que coube essa tarefa ao país, o governo Dilma aproveitou para ampliar a atuação dessa articulação e estreitar as relações bilaterais com a China. Há muito a conquistar, mas, sem dúvida, os parceiros principais da nova sagrada aliança cristã defendido pelo atual mandatário do Itamaraty, os EUA e a União Europeia, sempre enxergaram nos Brics um instrumento de expansão da influência chinesa.
Um mesmo tipo de contradição está na aliança estratégica que Bolsonaro estabeleceu já durante a campanha com Israel. Contrariamente ao amor declarado aos EUA, que dificilmente resultará em ganhos econômicos ou comerciais, no caso de Israel, há um interesse forte daquele país em mostrar vantagens concretas. Porém, esta aliança é inédita na história do país, que desde 1948 defendeu com equilíbrio a solução de dois estados, mantenho relações fortes com os palestinos e demais países árabes. Novamente, é o agronegócio, mas não só, quem mais aproveitou desta boa relação, com suas exportações para o Oriente Médio.
A proposta de mudar a Embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, em particular, não faz sentido algum dentro da tradição brasileira. É óbvio que provocaria mais danos que benefícios para os interesses comerciais e econômicos.
Por último, há a questão ambiental, outra área na qual Bolsonaro importou uma pauta de negacionismo em conflito com a trajetória nacional desde a Conferência do Meio Ambiente no Rio, a ECO-92. No caso, a pauta interessa a alguns setores do agronegócio, que desejam uma política de desestruturação dos mecanismos de controle ambiental no país e a geração de um clima de estímulo à grilagem e ao desmatamento.
O que se verifica, portanto, é o patente caráter ideológico das propostas e ideias importadas por este governo, sobretudo dos EUA, alheio à tradição diplomática do Brasil e em aparente contradição com interesses ligados à pauta ultraliberal. Esta última, por sua vez, parece não estar dialogando com o mundo de hoje, bem diferente daquele da década de 1980, quando tais doutrinas ganharam força e sustentaram o surgimento da globalização neoliberal.
Agora, em que medida tais contradições vão ser superadas ou acentuadas, depende também da dinâmica internacional. Em particular um acirramento do conflito entre os EUA e a China pode dar maior visibilidade a esta contradição, com uma pressão norte-americana para enquadrar seus aliados em uma cruzada contra os interesses chineses. Já uma repactuação, mesmo momentânea, desta relação, poderá facilitar no Brasil a convivência de um discurso ideológico abstrato de defesa do ocidentalismo judaico-cristão e o business as usual com a China.
Contudo, o que interessa ao eleitorado que votou em Bolsonaro é a prova do pudim, que consiste justamente em comê-lo: se haverá crescimento visível, geração de emprego e renda até o final do ano. Se a equipe econômica não conseguir mostrar serviço, as contradições no governo se acentuarão, ainda que os conservadores populistas e os militares sequer tenham propostas alternativas para a área econômica.
*Eventualmente pode-se identificar o ministro Sérgio Moro como representante singular de um quarto grupo. Por enquanto, ele atua como linha auxiliar da agenda ultraliberal e, ao mesmo tempo, tenta responder aos anseios do eleitorado do Bolsonaro no que diz respeito ao combate à corrupção e à violência.