Por que a onda conservadora não produz uma integração continental?

Por Nicole Lima, Rafael Sales, Gustavo Almeida e Gilberto Maringoni

Uma integração sulamericana baseada na nova safra de governantes eleitos ou que comandaram golpes de Estado encontra dificuldades para ser articulada. É bem possível que o extremismo direitista de Jair Bolsonaro, presidente da maior economia da região, seja um complicador para tal aproximação

Há uma profecia não realizada desde o início da ascensão da direita política na América do Sul, cujos marcos maiores podem ser debitados às eleições de Maurício Macri na Argentina, em 2015, e de Jair Bolsonaro no Brasil, em 2018. Trata-se da ideia de uma união conservadora sólida entre os novos chefes de Estado desta safra. Ou seja, assim como políticas de integração eficientes foram criadas ou aprofundadas no período 2000-14, uma aliança com sinal trocado seria a marca dos novos tempos. Isso não aconteceu.

Os motivos são muitos, mas há um em especial a ser ressaltado: as nuances entre as diversas facções da direita – que vão do extremismo bolsonarista à moderação do uruguaio Lacalle Pou – acabaram se tornando mais um obstáculo do que um facilitador para tal aproximação. Em português claro: o racismo, a misoginia, as políticas de devastação ambiental, o elogio às ditaduras, a apologia da tortura e o descaso com a pandemia do novo coronavírus distanciaram o Brasil até mesmo daquele que seria o líder com maior afinidade ao ex-capitão brasileiro, o presidente colombiano Iván Duque. Bolsonaro tornou-se um aliado tóxico para qualquer dirigente democrático.

Excetuando-se o esboço de integração anunciado no início de 2018 pelos presidentes do Brasil e Chile, denominado Prosul, nenhuma outra iniciativa de aproximação clara foi feita, nem mesmo no âmbito dos mecanismos existentes. Nas linhas seguintes, tentaremos examinar porque a integração reacionária não se concretizou até agora.

A integração interrompida

A integração regional na América do Sul, uma das regiões mais desiguais do mundo, é tema de extrema importância na análise do desenvolvimento e articulação socioeconômica da região. O regionalismo atua como forma de auxiliar a superação das assimetrias dentro e entre os países, articular políticas de cooperação e valorizar a posição destes no sistema internacional. Os países do sul encontram dificuldades em alcançar certo protagonismo e romper com a condição de dependência, pois, além de seus impasses internos, sofrem também interferências diretas da hegemonia global estadunidense. 

No início do século XXI, a vitória de governos progressistas na região, após um longo período de regimes militares e neoliberais, possibilitou a ascensão das pautas sociais e, no âmbito internacional, a adoção de políticas externas mais autônomas, que propunham a consolidação de uma integração regional nos âmbitos do comércio, imigração, defesa e a constituição de mecanismos políticos. A formulação da Unasul (União das Nações Sul-Americanas), em 2008, representa o auge dos esforços em relação ao tema, devido aos seus princípios, compromissos e número de países participantes. 

A instituição surge em um contexto de ascensão do multilateralismo e da cooperação internacional como forma de oferecer suporte e soluções para superar os desafios em relação ao desenvolvimento. Os primeiros movimentos se dão em 2000, quando se organiza a I Reunião dos Presidentes da América do Sul, em Brasília. Ali é decidida a criação da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), visando a articulação física do subcontinente. 

Seguem daí novas reuniões entre os líderes, em um movimento de estreitamento de relações, após sucessivos processos eleitorais que levaram ao poder dirigentes de centro e centro-esquerda.

Unasul, o passo mais ousado

Finalmente, em 2008, durante os governos Lula, no Brasil, Néstor Kirchner, na Argentina, Hugo Chávez, na Venezuela e Evo Morales, na Bolívia, celebra-se a institucionalização da Unasul, com o intuito de afirmar a região como um polo essencial do sistema internacional. A entidade exibe um perfil diferente de outras iniciativas de integração, como o Mercosul, tanto pelo número de países envolvidos, como por se ampliar para a articulação de pautas políticas mais complexas. 

Entre os pontos principais do Tratado Constitutivo da Unasul estão o diálogo, as políticas sociais, o meio ambiente, a energia, a infraestrutura e o financiamento conjunto de várias iniciativas, de forma a promover o desenvolvimento socioeconômico, estimular a inclusão social e a participação cidadã e diminuir as assimetrias em relação à autonomia e soberania dos Estados. 

Até 2014, o organismo se mostrou bastante ativo, produzindo diversos materiais documentais e fortalecendo as articulações entre países nos compromissos concordados na formação da Unasul. Entretanto, a chamada “onda progressista” latino-americana começa a extinguir-se a partir dos rescaldos da crise de 2008, da queda dos preços internacionais das commodities e do avanço da direita, seja em processos eleitorais, seja em processos golpistas, como em Honduras (2009), Paraguai (2012), Brasil (2016) e Bolívia (2019). As vertentes conservadoras recuperam a histórica subserviência a Washington e literalmente implodem políticas interestatais.

Faz-se necessário, desse modo, delinear o panorama de alguns países sul-americanos, de modo a relatar como ocorre o rompimento da onda progressista para a ascensão de uma região dominada pela direita. As várias vertentes compreendidas nesta denominação ignoram e revogam até mesmo tímidas políticas de distribuição de renda tentadas na década anterior e de melhoria de serviços públicos, como educação, saúde e moradia, assim como reintroduz discursos autoritários em países que já tanto sofreram com ditaduras militares.

Fim da onda progressista 

Na Argentina, Mauricio Macri chegou ao poder em 2015, após derrotar Cristina Kirschner, que governou durante dois mandatos. Macri iniciou um governo caracterizado como de centro-direita e conhecido principalmente pelo exorbitante crescimento da dívida externa argentina em seus anos de mandato, com um empréstimo de mais de US$ 50 bilhões por parte do FMI (Fundo Monetário Internacional). 

O Partido dos Trabalhadores (PT), no Brasil, estava no poder havia 14 anos consecutivos, quando a administração de Dilma Rousseff chegou ao fim, em 2016, através de um golpe orquestrado por seu então vice-presidente, Michel Temer. Ele se sentou na cadeira presidencial por dois anos e trouxe à pauta projetos retrógrados como a reforma da Previdência – mais radical do que a promovida nas gestões Lula e Dilma – e a reforma Trabalhista, assim como preparou o terreno para seu sucessor, Jair Bolsonaro, que se apresenta como sua versão piorada. Somando todos os seus discursos autoritários e preconceituosos e principalmente com sua total inabilidade de governar um país, Bolsonaro conduz a maior nação da América Latina aparentemente à margem do sistema internacional. A maior marca de sua administração até aqui é o saldo de mais de 120 mil mortes por coronavírus em todo o país.

Desde a transição democrática, em 1989, o Chile era administrado por uma coalizão formada por democratas cristãos, liberais, social-democratas e socialistas, chamada de “Concertación de Partidos por la Democracia”. Embora seja difícil classificar os governos de Michelle Bachelet como de centro-esquerda, suas duas gestões (2006-10 e 2014-18) são nitidamente progressistas. Agora o país é administrado pela segunda vez pelo empresário Sebastián Piñera. Considerado um conservador, é representante da coalizão de centro-direita chamada “Vamos Chile”.

Em território boliviano, Evo Morales sofreu denúncias de irregularidades nas eleições que o elegeram pela quarta vez consecutiva, em 2019. Após violentos conflitos de rua e chantagens contra dirigentes políticos, o presidente foi forçado a renunciar. A vice-presidente do Senado Jeanine Áñez assumiu a presidência interina e sofre contestações por não respeitar preceitos constitucionais. Os governos do México, Cuba, Venezuela e Uruguai repudiaram o que chamaram de golpe de Estado sofrido pela Bolívia, diferentemente do governo brasileiro e estadunidense, que abertamente apoiaram a proclamação de Áñez, alegando que o ocorrido é nada mais que uma reforma institucional, da qual o país necessitaria. 

Em 2019, mais uma coalizão da esquerda, a Frente Ampla, que governou o Uruguai por 15 anos, sai do poder para dar lugar à centro-direita de Luis Lacalle Pou. Este sintetizou sua campanha na necessidade de mudança política. Lacalle Pou é chamado por muitos de “direita civilizada”, visto que o presidente garantiu que não revogará leis progressistas que não se contraponham ao ideário neoliberal, como a comercialização da maconha. No entanto, mesmo o Uruguai sendo o país da região que melhor lidou com a crise sanitária, Lacalle Pou anunciou a chamada Lei de Urgência. Esta contempla vários cortes no orçamento de áreas como saúde e educação. 

Pontos em comum

A ascensão da direita no continente possui diversos pontos em comum. Em países que passaram por longos períodos de administração progressista, o principal discurso utilizado pelo conservadorismo é a necessidade de mudança política e a hipotética destruição causada pela esquerda. A transição política nesses casos é quase sempre feita através da negação e revogação de políticas implementadas pelas lideranças anteriores, sem plano de governo efetivo, a não ser o beabá neoliberal: cortes orçamentários, redução de serviços públicos, privatizações e alinhamento político a Washington. O governo Bolsonaro, no Brasil, representa o extremo dessas tendências.        

O mecanismo alardeado pela direita regional para trazer à tona um regionalismo conservador, teoricamente seria o Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (Prosul), instância intergovernamental em tese destinada a articular ações conjuntas de desenvolvimento na região, idealizado pelo Presidente do Chile, Sebastián Piñera. 

A nova organização tem como objetivo substituir a Unasul, praticamente extinta. O órgão tem um forte caráter ideológico, diferente do que asseguram as palavras de Piñera, que colocou o Prosul como “um fórum sem ideologias”. O grupo trabalha em pautas da direita conservadora, como o isolamento dado à Venezuela, enquanto adere ao discurso de Washington em muitos outros aspectos. 

Fundado em março de 2019, o Prosul ainda não engrenou. Diferentemente da Unasul, que possuía uma estrutura consolidada com vários órgãos internos, o Prosul aparenta ser mais um ambiente de diálogo do que uma estrutura estável, o que deixa a organização menos consistente. Na Unasul, por exemplo, existia o Conselho de Saúde Sul-Americano, divisão que tinha por objetivo reunir ministros da saúde dos países membros para discutir e elaborar tratativas na área de saúde pública, o que seria um instrumento de cooperação regional fundamental em meio a uma pandemia. 

Direita contra Bolsonaro

Os protestos de 2019 contra os governos neoliberais no Chile, Equador e na Colômbia, além das crises políticas no Peru e no Paraguai, em conjunto com a pandemia do coronavírus e a fraqueza institucional do Prosul, resultaram na atual falta de articulação entre os países sul-americanos. As lideranças atuais da região são, em sua maioria, conservadoras, o que levanta a suposição de que a cooperação regional seria maior, tendo em vista as ideologias em comum. Entretanto, algumas diferenças entre os conservadores sul-americanos, principalmente opiniões contrárias ao extremismo do presidente Bolsonaro, possuem forte influência nesta falta de articulação.

Mesmo com visões similares, existem diversos desentendimentos entre o presidente brasileiro, que exibe uma postura radical e ideológica, e seus aliados direitistas, como Piñera, Iván Duque e principalmente Lacalle Pou. Os três últimos possuem uma posição mais moderada em algumas questões. Comentários desrespeitosos por parte do brasileiro contra Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile e atual alta comissária da ONU em Direitos Humanos, e de apoio à ditadura de Pinochet, à qual Bolsonaro não esconde sua admiração, obrigou Piñera a fazer um pronunciamento, em que se colocou contrário à manifestação de seu suposto aliado. A má gestão em relação às queimadas e ao desmatamento da Amazônia revelaram diferenças entre Bolsonaro e Iván Duque, que assumiu a liderança sobre o tema ambiental na criação do Pacto de Letícia pela Amazônia. Já Lacalle Pou rejeitou o apoio de Bolsonaro na corrida eleitoral uruguaia em 2019, insatisfeito com a intromissão do brasileiro sobre os acontecimentos fora de seu território. 

Outro ponto de diferença entre Bolsonaro e seus pares foi a maneira como trataram o início da pandemia no continente. Enquanto os outros países agiram de maneira mais enérgica para conter a infecção, o negacionismo e a falta de trato de Bolsonaro com o coronavírus fizeram com que países vizinhos, inclusive governados por aliados do presidente brasileiro, ficassem preocupados e temerosos com a situação brasileira. Mario Abdo Benítez, presidente do Paraguai e aliado político de Bolsonaro, declarou em maio que o Brasil é a principal ameaça na região, e, portanto, naquele momento as fronteiras com o país estariam fechadas.

Venezuela no centro da questão

A direita sul americana parece se unir quando o assunto é seu inimigo teoricamente comum: a Venezuela de Nicolás Maduro. O país vizinho continua passando por imensa crise econômica e política e encontra-se ainda sob o governo de Maduro, desde 2013, após a morte de Hugo Chávez, do qual o atual líder era braço direito. A crise venezuelana, apesar de ser causada por uma série de problemas internos, é claramente acentuada pela não solicitada intromissão estadunidense, que confabula com a autoproclamação de Juan Guaidó como presidente interino, apoiado pela direita continental. Ecoando o discurso de Washington sobre o líder autoproclamado, os conservadores do sul criaram um fórum especialmente para contrapor-se à Maduro e apoiar Guaidó, o Grupo de Lima.

Formado em 2017 e composto pela maioria dos que viriam a integrar o Prosul, o grupo foi idealizado pelo ex-presidente do Peru, Pedro Pablo Kuczynski, que renunciou em 2018 em meio a  denúncias de corrupção. Seu objetivo é reunir os chanceleres dos países membros para discutir a situação venezuelana. Caracas enfrenta extrema pressão política e isolamento diplomático por parte de seus vizinhos latino-americanos, amparados na ofensiva estadunidense contra a Venezuela. 

Futuro

A onda conservadora já sofreu um baque em 2019, com a derrota de Maurício Macri – um dos primeiros a chegar ao poder – e com a consequente volta do peronismo e do kirchnerismo governo argentino. O processo eleitoral boliviano, em outubro, pode trazer surpresas. Em novembro ocorrem às eleições presidenciais nos EUA, e caso aconteça uma vitória do democrata Joe Biden, é provável que a fraca união da direita sul-americana perca mais força ainda sem o apoio irrestrito de Donald Trump (Vale dizer que tanto Trump quanto Biden mantém semelhante retórica agressiva contra a Venezuela). Como tema central, a pandemia do coronavírus segue matando, destruindo empresas e postos de trabalho e mergulhando os países novamente em forte recessão e aumento da desigualdade social. A combinação desses variados fatores desenhará o mapa político do continente a partir de 2021.

Por fim, vale dizer que o alinhamento aos EUA por parte dos governos de direita parece estabelecer uma volta aos tempos da Guerra Fria, na qual os países funcionavam como marionetes do Departamento de Estado. A este jamais interessou aproximação entre os Estados do continente sem balizas cuidadosamente – e às vezes violentamente – estabelecidas pelo Império.

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