Intervenção do Secretário-Geral da OEA na Comissão Interamericana de Direitos Humanos abre crise na organização

Por Gilberto M. A. Rodrigues, Isabela Montilha e Mirella Sabião

Paulo Abrão atuou nos governos de Lula e Dilma, tendo sido Presidente da Comissão de Anistia, órgão menosprezado pelo governo de Bolsonaro, que exalta a ditadura e seu algozes. A crise aberta pelo Secretário-Geral com a CIDH não tem prazo para terminar

O Secretário Geral da OEA, Luiz Almagro, decidiu de forma unilateral não renovar o contrato do Diretor Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o brasileiro Paulo Abrão, que havia sido reconduzido por unanimidade pela própria Comissão. Essa decisão viola a autonomia da CIDH, fere princípios de direitos humanos garantidos por ela e abre uma crise sem precedentes no Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Em janeiro de 2020, a CIDH, um dos pilares do Sistema Interamericano de Direitos Humanos da OEA, prorrogou de forma unânime o mandato de seu Secretário Executivo, Paulo Abrão. O brasileiro estava à frente da Comissão desde 2016 e foi responsável pelo aumento exponencial da atuação do órgão no período, por meio da criação de planos estratégicos e de reestruturações administrativas. Ao final da sessão, o Secretário Geral da OEA foi informado do resultado por meio de nota oficial e não demonstrou nenhuma objeção. Esta postura se manteve durante meses até que, em 15 de agosto, último dia de mandato de Abrão, Almagro informou a CIDH sua decisão de vetar o processo de recondução do brasileiro para a Secretaria Executiva da Comissão, sem consulta prévia à CIDH.

Surpresa e indignação

Para justificar sua decisão, Almagro fez uso de um relatório confidencial elaborado pela ombudsperson da OEA, que contém 61 denúncias de ex-funcionários da CIDH contra a gestão de Abrão. Dentre elas, há denúncias de assédio moral, abuso de autoridade e conflito de interesses. Entretanto, tal decisão, inédita na história da OEA, foi recebida com enorme surpresa e indignação, não apenas pelos Comissários da CIDH mas por outros organismos multilaterais, como a ONU e a Unesco, por diversas organizações globais de direitos humanos e até mesmo por líderes políticos de diferentes países. Isso se deve ao entendimento de que a decisão unilateral de Almagro viola o caráter autônomo e independente da Comissão.

O timing de apresentação do relatório contra Abrão – pronto desde 2019, mas entregue a Almagro apenas cinco dias antes da recondução do Secretário Executivo – é visto como muito suspeito. Além disso, num cenário de grande polarização política no hemisfério, que se reflete dentro da OEA, há sérios indícios de viés ideológico na intervenção, dado que procedimentos formais básicos foram ignorados, como um processo normal de investigação para as acusações contra Abrão, garantindo-se o devido processo legal e o amplo direito de defesa ao acusado. Porém, nada foi recebido pela divisão de recursos humanos e as denúncias, portanto, não foram formalmente investigadas.

Durante o mandato de Abrão e a ação mais assertiva da CIDH sobre os Estados-membros, realizaram-se diversas denúncias e relatórios de violações de direitos humanos cometidas por vários países, nas mais diversas frentes. Tais relatórios deixaram insatisfeitos Estados-membros com dificuldades sistêmicas em respeitar as recomendações da Comissão, como o Brasil, que foi alvo de mais de 45 procedimentos em dois anos, acumulando o maior número de denúncias contra o país na história da CIDH. É aí, inclusive, em que se levanta outro questionamento sobre a posição de Almagro: as denúncias contra Abrão chegaram às vésperas de um relatório extraordinário sobre o Brasil, abrangendo violência policial e atuação de milícias, além de outras violações do sistema democrático, abrangendo o período de novembro a dezembro de 2018 (governo Temer) e janeiro a setembro de 2020 (governo Bolsonaro). 

Coalizão lobista

Segundo funcionários da Comissão entrevistados por veículos de comunicação, o Brasil, juntamente com outros países investigados pela CIDH – como os Estados Unidos, a Colômbia e a Bolívia – formaram uma coalizão lobista para tentar limitar sua atuação. Em 2019, o mesmo grupo já havia redigido uma carta à Comissão questionando o seu sistema e sugerindo que ela “respeitasse a autonomia dos Estados”, concedendo-lhes mais liberdade para lidar com questões internas de direitos humanos. Com o prosseguimento dos relatórios, este grupo teria encontrado uma segunda alternativa para frear a Comissão, apoiando a reeleição de Luis Almagro, em março de 2020, cujo resultado foi celebrado pelo Itamaraty. Especula-se que o Brasil, em troca, indicará alguém para um alto cargo na OEA. 

Cabe por fim recordar que Paulo Abrão atuou nos governos de Lula e Dilma, havendo sido Presidente da Comissão de Anistia, órgão menosprezado pelo governo de Bolsonaro, que exalta a ditadura e seu algozes.

A crise aberta pelo Secretário-Geral com a CIDH não tem prazo para terminar, uma vez que o Presidente da CIDH, o embaixador mexicano Joel Hernandez García, a primeira Vice-Presidenta, a especialista chilena Antonia Urrejola Noguera, e a segunda Vice-Presidenta, a professora brasileira Flavia Piovesan, com apoio dos demais comissários, não acataram a decisão de Almagro e seguem apoiando a recondução de Abrão à Secretaria Executiva da CIDH.

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