Por Bruna Belasques, Bruno Castro e Ana Tereza L. M. de Sousa
A postura de alinhamento automático do Brasil ao governo Trump, patrocinada por Bolsonaro, gerou atritos com tradicionais aliados do Sul global, sem que hovesse ganhos significativos para o país. Com o agravamento da pandemia e a necessidade de vacinas, a postura revelou-se errática.
Em 2020, com a pandemia do Covid-19, as tensões entre os Estados chinês e o estadunidense resultaram também em disputas na Organização Mundial da Saúde (OMS) e na Organização Mundial do Comércio (OMC). O Estado brasileiro, em virtude ao seu alinhamento ideológico com Donald Trump, acabou tensionando as relações com a China no âmbito destes organismos multilaterais. Por sua vez, no Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU, os representantes do Brasil parecem ter tido posturas em consonância com as do Estado chinês. Abaixo traremos alguns dos acontecimentos, os quais dizem respeito aos posicionamentos do Estados brasileiro e chinês na OMS, CDH e OMC que marcaram o ano de 2020.
Incerteza do apoio para o Conselho de Segurança
Em maio deste ano, o Brasil assinou uma resolução que propunha: i) que a vacina contra o Covid-19 se tornasse um bem público global assim que estivesse pronta, e; ii) investigação acerca das respostas de combate à pandemia. A China se colocou contrária quanto a este último tópico, uma vez que poderia suscitar argumentos difundidos sobretudo por aliados de Trump e de Bolsonaro, segundo os quais o vírus teria surgido na China e que este país seria, portanto, responsável pela pandemia.
Embora os EUA tenham deixado de financiar a OMS, em meio à crise do coronavírus, este país tampouco quis que a China assumisse protagonismo na organização. Isto fez com que representantes do governo Bolsonaro apoiassem a ideia de reforma da OMS, liderada pelo governo de Trump. Entre os objetivos dessa reforma estaria “tornar o departamento de emergências da OMS completamente independente”, o que teria como objetivo impedir um papel de protagonista dos representantes do Estado chinês na instituição.
O apelo por uma reforma na OMS foi também defendido por Bolsonaro na Cúpula dos BRICS realizada em novembro desse ano.
De acordo com o presidente brasileiro, a OMS estaria estabelecendo monopólio sobre o conhecimento do coronavírus e protegendo a China, deste modo a proposta de reforma reivindicaria maior transparência da organização. Xi Jinping, por sua vez, em âmbito da Cúpula dos BRICS, defendeu o papel da OMS como um importante organismo na luta de enfrentamento contra o Covid-19, no multilateralismo e na busca por solidariedade.
As reivindicações por maior transparência da OMS, de Brasil e EUA, soaram desse modo hipócritas, uma vez que os representantes de ambos os países atuaram para deslegitimar a importância desta organização e a criação de uma vacina contra o Covid-19 por parte da China. Além disso, em alguma medida, podemos apontar que o papel de liderança dos representantes chineses na OMS derivou do vácuo deixado pelos EUA na organização. Assim, ao buscar apresentar uma reforma da OMS, o país poderia estar, em última instância, buscando redirecionar a organização à sua liderança para os EUA – o que está em consonância com a política de alimento que o Brasil praticou com relação ao governo Trump.
No âmbito do Conselho de Segurança, o grupo do BRICS, em novembro de 2020, inicialmente, na esteira do projeto de reformulação do conselho, reforçou o antigo e persistente pedido do Brasil da aquisição de uma cadeira permanente no órgão. Contudo, no documento da declaração final do encontro anual, o apoio explícito à candidatura do Brasil foi omitido. Levantaram-se suspeitas que o ocorrido tenha se devido por intento da China, país com o qual o Brasil teve tensões devido ao alinhamento com Trump, além do fato de a China estar em constante tensão com a Índia.
Oscilações na OMC e conformidade na CDH
Se na OMS o embate com a China foi mais claro, na Organização Mundial do Comércio (OMC) a posição tem sido mais complexa. Por um lado, a OMC, que em dezembro de 2019 foi paralisada por meio de um bloqueio dos EUA na nomeação de analistas, passou a ter sua reativação pressionada em janeiro de 2020 por um colegiado de 17 membros, incluindo União Europeia, China e Brasil, interessados no retorno das rodadas de negociação. Contudo, ainda na OMC, em julho de 2020, o Brasil submeteu junto aos EUA uma proposta para que o princípio de economia de mercado pudesse valer para todos os membros, “para garantir condições equitativas de competição econômica no comércio internacional”. O documento sinalizou ainda para a necessidade de todos os países terem práticas e políticas orientadas ao mercado, o que seria um recado para a China, a qual sofre críticas por supostamente não respeitar tal princípio. Lembra-se que o Brasil, apesar de reconhecer esse status ao país desde 2004, ainda reluta em aplicá-lo, fazendo-o de modo parcial desde 2016.
Os representantes do Estado brasileiro tomaram ainda posição atípica no que diz respeito à quebra de patentes. No geral, historicamente, o Estado brasileiro teve papel importante de apoio a “quebra de patentes” (licença compulsória) para medicamentos e similares, uma vez que as indústrias farmacêuticas importantes se encontram em sua maioria em países desenvolvidos, portanto, a suspensão de patente acaba permitindo a importação de remédios a preços mais baixos ou a internalização da produção. Os países desenvolvidos – acompanhados pelo Brasil, único país do Sul Global a assumir tal posição – votaram contra a “quebra da patente” das vacinas a Covid-19, por sua vez, países em desenvolvimento como Índia, China e África do Sul foram favoráveis. Percebeu-se, portanto, em 2020, em âmbito da OMC uma postura oscilante do Estado brasileiro, que pendeu para – contra as tradições da política externa brasileira – tomar posições contrárias aos países em desenvolvimento.
Já em âmbito do CDH da ONU, o Brasil apoiou uma resolução proposta por China, Venezuela, Síria, Cuba e Irã para uma mudança no Conselho de Direitos Humanos da organização multilateral. O texto previa o enfraquecimento da capacidade de pressão da ONU em relação a desrespeitos de Direitos Humanos por Estados membros, pauta de corrobora com a agenda nacional de Bolsonaro de combate aos direitos humanos.
Trump na geopolítica e China nos costumes?
A postura aparentemente vacilante do Brasil em relação às oscilações entre apoio à China e apoio aos EUA, por sua vez, evidencia a estratégia do governo de Bolsonaro de acomodar os interesses internacionais de seus grupos integrantes. Enquanto o Brasil angariou conflitos com a China em pautas geopolíticas, endossando o discurso trumpista acerca da responsabilidade chinesa pela pandemia, também não hesitou em se aliar ao país asiático para angariar apoio à sua agenda nacional de combate aos Direitos Humanos ou de aumento das exportações de commodities. Neste sentido, a esfera do multilateralismo, embora seja discursivamente negligenciada e repudiada por Ernesto Araújo apareceu como espaço de delicada articulação, na qual se manifestaram as tentativas de Bolsonaro de acomodar os interesses dos distintos grupos que compõem o seu governo, minimizando os prejuízos e as consequentes tensões.