Por Mikael Servilha e Lucas Tasquetto
Apesar do Brasil estar passando pelo momento mais crítico da pandemia, o governo brasileiro se opõe ao pedido de dispensa temporária dos compromissos propriedade intelectual para as vacinas, na OMC. Em reunião realizada em 10 de março último, o Brasil foi a único país em desenvolvimento a se opor abertamente à proposta, preferindo acompanhar os países ricos.
Em 2 de outubro de 2020, na Organização Mundial do Comércio (OMC), as delegações da Índia e da África do Sul apresentaram ao Conselho de TRIPS proposta de renúncia por tempo limitado de certas obrigações do Acordo TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio) em decorrência do enfrentamento aos desafios postos pela pandemia. O documento, co-patrocinado pelos representantes do Quênia, eSwatini, Paquistão, Moçambique, Bolívia, Venezuela, Mongólia, Zimbábue, Egito, Grupo Africano e Grupo dos Países Menos Desenvolvidos, propõe uma waiver – dispensa temporária para todos os membros da OMC – dos compromissos sobre patentes e outros instrumentos de propriedade intelectual para prevenção, contenção e tratamento da Covid-19. Segundo os proponentes, o objetivo é garantir que os direitos sobre propriedade intelectual não dificultem o acesso à vacinas, medicamentos, testes e insumos médicos essenciais, como máscaras, equipamentos de proteção individual e ventiladores; e não criem barreiras para o desenvolvimento, fabricação e fornecimento desses bens para todos, até que, em todo o mundo, a maioria da população esteja imunizada.
Amplo apoio
Desde quando foi apresentada ao Conselho no início de outubro de 2020, a proposta esteve na agenda das diversas rodadas de negociações formais e informais na OMC, realizadas a partir de então, e deu início a um grande debate em âmbito global. Até a segunda semana de março de 2021, cerca de cem membros, além de diversas organizações da sociedade civil, como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, People´s Health Movement, Commons Network, Focus on the Global South e a Organização Médicos Sem Fronteiras, e organizações internacionais, como a Organização Mundial da Saúde, apoiam a medida. Embora conte com amplo apoio dentro da Organização, o projeto depende do consenso para sua aprovação.
A proposta liderada por Índia e África do Sul destaca as rupturas nas cadeias globais de abastecimento, relacionadas com os crescentes descompassos entre oferta e demanda vistos durante o contexto de emergência global. Mais do que isso, alerta para as consequências socioeconômicas que impactam mais os países em desenvolvimento e países menos desenvolvidos. Assim, ao passo que novos diagnósticos, tratamentos e vacinas para a Covid-19 são desenvolvidos, crescem as preocupações acerca da pronta disponibilidade, em quantidades suficientes e por um preço acessível, para atender à demanda mundial. A aprovação do waiver representaria justamente uma medida concreta de cooperação global para mitigar os efeitos das disparidades no acesso aos bens relacionados ao enfrentamento da pandemia.
Propriedade intelectual como obstáculo
O documento abarca quatro seções específicas dispostas na Parte II do Acordo TRIPS: direitos autorais e direitos relacionados (Seção 1); desenhos industriais (Seção 4); patentes (Seção 5); e proteção de informações não divulgadas (Seção 7), que inclui os segredos comerciais. Seus autores entendem que as proteções à propriedade intelectual potencialmente dificultam o fornecimento de produtos médicos essenciais, e que a renúncia às referidas obrigações permitiria que os membros da OMC alterassem suas leis nacionais para que suas indústrias domésticas pudessem produzir versões genéricas de quaisquer vacinas e tratamentos disponíveis[i].
No dia 10 de dezembro, em reunião formal do Conselho do TRIPS realizada virtualmente, os defensores da proposta de waiver responderam a diversos questionamentos e objeções levantados por membros que sediam os maiores laboratórios do setor farmacêutico, como Estados Unidos, União Europeia (UE), Japão, Canadá e Suíça e por outros países, como Brasil, Equador e Austrália, para enfraquecer o projeto e arrastar as negociações. Os três principais argumentos apresentados pelos que se opõem à renúncia foram que as flexibilidades previstas no Acordo TRIPS já seriam adequadas; que a proteção da propriedade intelectual não seria uma barreira para um acesso amplo aos produtos de saúde; e que a proteção da propriedade intelectual seria necessária para incentivar e garantir o financiamento em pesquisa e inovação[ii].
Em resposta, o delegado sul-africano Mustaqeem da Gama reiterou que a entrega em curto intervalo de tempo de vacinas deve-se, sobretudo, aos esforços de voluntários para os testes – muitos em países em desenvolvimento –, de pesquisadores e, também, ao financiamento de governos. Sobre as barreiras da propriedade intelectual no atual contexto, a Indonésia relatou que “recentemente não conseguiu convencer a Gilead (farmacêutica estadunidense) a expandir a produção no país por meio de licenciamento voluntário”.
Indisponibilidade de vacinas
Para o governo indonésio, a importação do medicamento era mais cara e difícil de se concretizar devido ao fornecimento limitado. A Indonésia lembrou, também, que durante a propagação da gripe aviária H5N1, em 2006, as vacinas produzidas pelas farmacêuticas estavam indisponíveis para os países em desenvolvimento. A delegação de eSwatini argumentou que ações de P&D para doenças infecciosas emergentes dependem de financiamento público, e não das garantias de propriedade intelectual. O representante do país africano ainda citou o exemplo da vacina Pfizer-BioNTech, “que garantiu US$ 546 milhões de fundos públicos, mais US$ 6 bilhões em acordos de fornecimento, enquanto a Moderna obteve mais de US$ 1 bilhão para suas ações de pesquisa e inovação”[iii]. Por fim, em relação às flexibilidades já previstas no TRIPS, acerca da produção de equivalentes genéricos, tem-se que a instituição dessas exceções são morosas e não se estendem ao conhecimento técnico, o qual é condição necessária para que todos os países fossem rapidamente beneficiados pelas novas tecnologias da área da saúde[iv].
Compras antecipadas
Enquanto se opõem à iniciativa, esses países do Norte fecham negociações diretamente com os principais fabricantes de vacinas do novo Coronavírus (Sars-Cov-2). Dados mostram que grande parte das doses da vacina da Pfizer, que estarão disponíveis até o final de 2021, já foi comprada por governos de países ricos. Segundo o portal Global Justice Now, mais de 1 bilhão de doses dos 1,35 bilhão que a farmacêutica diz ter capacidade de produzir até o final do próximo ano já haviam sido comercializadas antes do final de 2020. A União Europeia adquiriu no ano passado 200 milhões de doses e estabeleceu opção de compra de mais 100 milhões, o Reino Unido comprou 40 milhões e os Estado Unidos acertaram a compra de 100 milhões com opção de compra de mais 500 milhões[v]. Ainda de acordo com o portal, 78% do 1 bilhão de doses que a farmacêutica Moderna afirma poder produzir até o final de 2021 já foram vendidas, principalmente para os Estados Unidos e UE[vi]. Na mesma linha, o Canadá, com aproximadamente 38 milhões de habitantes, encomendou e colocou opções de compra de mais de 400 milhões de doses de vacinas com diversos fabricantes[vii].
Em reunião fechada na OMC, realizada em 25 de janeiro de 2021, a delegação indiana afirmou que o “pior dos pesadelos” se confirmou diante do dissenso em torno da proposta de waiver, visto que não há vacinas para todos[viii]. Segundo dados do Our World in Data, até 8 de março de 2021 cerca de 313,42 milhões de doses de vacina contra a Covid-19 haviam sido administradas em todo o mundo. Desse total, aproximadamente 30% foram aplicadas nos Estados Unidos e 21% na UE e Reino Unido, concentrando nesses territórios mais da metade do total das vacinas aplicadas em todo o mundo. Enquanto os países da América do Sul (5,9%) e da África (1,63%) concentram cerca de 7,5% das doses administradas em todo o mundo até então. No mesmo período, foram administradas no Brasil 3,5% das doses aplicadas em nível global.
Xolelwa Mlumbi-Peter, embaixadora sul-africana e presidente do Conselho de TRIPS, enfatizou que a prioridade da comunidade global é interromper as cadeias de transmissão, reduzir os riscos de novas variantes do Sars-Cov-2 e reverter a tendência de sofrimento global decorrente da pandemia[ix]. Sobre isso, a delegação indiana enfatizou que até fevereiro deste ano 130 países ainda não haviam recebido nenhuma dose de vacina e alertou que, se o vírus continuar se espalhando descontroladamente pelo Sul Global, ele sofrerá mutações repetidas vezes, o que pode prolongar ainda mais a pandemia e também abrir a possibilidade do vírus voltar a atormentar o Norte[x].
Brasil contraria sua História
A postura do governo brasileiro em oposição à dispensa de certas obrigações do Acordo TRIPS contraria as posições do país na Organização, que na história recente rivalizou com os países desenvolvidos para a garantia da saúde da sua população. Em 2001, o governo brasileiro apoiou ativamente os debates no âmbito da OMC, sendo favorável à flexibilização do Acordo TRIPS em casos de crises de saúde pública.
A flexibilização dos direitos de propriedade intelectual foi objeto de declaração da Rodada de Doha, a Declaração de Doha sobre TRIPS e Saúde Pública. Dentre as flexibilizações, a Declaração reconhece que cada membro tem o direito de conceder licenças compulsórias de propriedade intelectual para proteção da saúde pública em casos de emergências nacionais ou em circunstâncias de extrema urgência. Nos primeiros anos, essa ferramenta favoreceu o Brasil em negociações com fabricantes farmacêuticas que, em parte, acabaram reduzindo os preços de remédios patenteados. Em 2007, por exemplo, o governo brasileiro fez uso da prerrogativa dessa declaração e quebrou a patente do medicamento antirretroviral Efavirenz, indicado para o tratamento combinado de infectados pelo HIV-1. O decreto de licença compulsória, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, permitiu a compra de versões genéricas – até 72% mais baratas[xi]–, a produção do medicamento e reforçou o papel do Brasil como um importante ator internacional em defesa dos interesses dos países do Sul Global.
Sob o quadro de vulnerabilidade na busca por imunizantes e em meio à alta nos números de mortes e casos confirmados de Covid-19 em 2021, o Brasil opta, então, por amenizar sua postura nas negociações da proposta de waiver. Na reunião de 25 de janeiro, ao invés de insistir em objeções e questionamentos para arrastar as negociações, como fizera nas reuniões anteriores, o governo brasileiro manteve-se em silêncio.
Esse recuo em relação à proposta indiana e sul-africana foi interpretado como uma estratégia para evitar maiores complicações na negociação de importação de doses da vacina Oxford/AstraZeneca produzidas na Índia pelo Instituto Serum, que dependem da autorização do governo indiano para a exportação[xii]. Em 8 de janeiro de 2021, Jair Bolsonaro enviou uma carta ao primeiro ministro indiano, Narendra Modi, solicitando urgência no envio de 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca produzidas na Índia[xiii]. Até essa data o governo federal não possuía doses para o início da campanha nacional de vacinação. O pedido de urgência se deu em meio ao quadro de politização das vacinas, que envolveu o presidente brasileiro e o governador de São Paulo, João Doria, e diante da iminência da aprovação pela Anvisa dos dois primeiros pedidos para o uso emergencial no Brasil das 6 milhões de doses da vacina da Sinovac e dos 2 milhões de doses da vacina AstraZeneca, parceira da Fiocruz no Brasil – entidade de administração pública federal –, que ainda seriam importadas do Instituto Serum. As doses da vacina CoronaVac, do laboratório chinês Sinovac em parceria de licenciamento em condições estritas com o Instituto Butantan – órgão vinculado à Secretaria Estadual de Sáude de São Paulo –, já se encontravam em território brasileiro.
Na ocasião das negociações com o Brasil o governo indiano levantou a questão do impasse na OMC como causa principal para a falta de vacinas. E, além disso, optou em primeiramente enviar vacinas para países geopoliticamente aliados. Em 19 de janeiro o governo indiano anunciou o início das exportações e divulgou a lista de países que receberam os primeiros lotes. O Brasil não estava incluído. Somente em 21 de janeiro que a Índia autorizou a exportação das 2 milhões de doses da vacina para o Brasil, que chegaram na Fiocruz um dia depois.
Acompanhando os países ricos
Apesar do Brasil estar passando pelo momento mais crítico da pandemia, com uma campanha de vacinação lenta e registrando seguidos recordes nos números de mortes e casos confirmados por Covid-19, o posicionamento do governo brasileiro de oposição ao pedido de waiver se mantem. Em reunião formal realizada em 10 de março de 2021, oitava rodada das negociações na OMC, o Brasil foi a único país em desenvolvimento a se opor abertamente à proposta. A delegação brasileira, acompanhando os países desenvolvidos, voltou a defender que as atuais flexibilidades previstas no acordo TRIPS são suficientes e que poderiam ser adotadas para acelerar o fornecimento de vacinas e outros bens relacionados ao enfrentamento à Covid-19. Sobre isso, a delegação sul-africana rebateu afirmando que se as flexibilidades fossem suficientes, já deveriam ter funcionado[xiv]. Nessa mesma data o Brasil registrou 2.349 óbitos[xv], primeira vez que o país registra mais de duas mil mortes por Covid-19 em um único dia.
A proposta de waiver estará na agenda da próxima reunião formal do Conselho, marcada para 8-9 de junho de 2021. Há a expectativa de que antes disso ocorram outras rodadas de negociações.
[i] PRABHALA, A; JAYADEV, A; BAKER, D. Want Vacines Fast? Suspend Intellectual Property Rights. The New York Times¸ dezembro/2020. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/12/07/opinion/covid-vaccines-patents.html.
[ii] SLEVIN, Terry. Public Health Association of Australia, nov/2020. Disponível em: https://www.phaa.net.au/documents/item/4903.
[iii] Third World Network. TRIPS waiver gains more support despite efforts to stall its passage, dez/2020. Disponível em: https://www.twn.my/title2/wto.info/2020/ti201213.htm.
[iv] LABONTÉ, R; JOHRI, M. Canada’s opposition to a WTO proposal hurts developing countries’ pandemic fight, dez/2020. Disponível em: https://www.theglobeandmail.com/opinion/article-canadas-opposition-to-a-wto-proposal-hurts-developing-countries/.
[v] Global Justice Now. Most of Pfizer´s vaccine already promised to richest, compaigners warn, nov/2020. Disponível em: https://www.globaljustice.org.uk/news/2020/nov/11/most-pfizers-vaccine-already-promised-richest-campaigners-warn.
[vi] Global Justice Now. 78% of Moderna vaccine doses already sold to rich countries, nov/2020. Disponível em: https://www.globaljustice.org.uk/news/2020/nov/16/78-moderna-vaccine-doses-already-sold-rich-countries.
[vii] NDTV. Canada To Get Moderna Covid Vaccine Before Year End: Justin Trudeau, dez/2020. Disponível em: https://www.ndtv.com/world-news/canadian-prime-minister-justin-trudeau-country-to-get-up-to-1-68-000-doses-of-moderna-covid-vaccine-before-year-end-2339139.
[viii] CHADE, Jamil. Índia: falta de vacina é culpa de impasse criado por Brasil e países ricos. UOL, fev/2021. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/01/19/india-falta-de-vacina-e-culpa-de-impasse-criado-por-brasil-e-paises-ricos.htm?cmpid=copiaecola.
[ix] OMC. Members discuss TRIPS waiver request, Exchange views on IP role amid a pandemic, fev/2021. Disponível em: https://www.wto.org/english/news_e/news21_e/trip_23feb21_e.htm.
[x] Third World Network. Two-thirds of WTO members issue call for a TRIPS waiver, fev/2021. Disponível em: https://www.twn.my/title2/wto.info/2021/ti210220.htm.
[xi] PARIZ, T. Lula quebra patente de remédio anti-Aids. G1, maio/2007. Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL31234-5603,00-LULA+QUEBRA+PATENTE+DE+REMEDIO+ANTIAIDS.html.
[xii] CHADE, Jamil. Op cit.
[xiii] SECOM/MS. Nota Oficial 08/01/2021. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/notas-oficiais/2021/nota-oficial-secom-ms-08-01-2020.
[xiv] CHADE, Jamil. O Brasil não apoia projeto indiano de suspenção de patentes de vacinas na OMC. 10 de março de 2021. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/03/10/brasil-nao-apoia-projeto-indiano-de-suspensao-de-patentes-de-vacinas-na-omc.htm.
[xv] Brasil registra 2.349 mortes em 24 horas, novo recorde desde início da pandemia; média móvel também aumenta. G1 Globo, 10 mar. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/03/10/brasil-registra-2349-mortes-em-24-horas-novo-recorde-desde-inicio-da-pandemia-media-movel-tambem-aumenta.ghtml.