14 de junho de 2022
Por Caio Vitor Spaulonci, Giovana Martins, Gabriel Calil, Laryssa Bastos, Melissa Souza e Tatiane Anju Watanabe (Foto: Alan Santos/Presidência da República)
Durante a abertura do evento, o presidente Joe Biden falou principalmente sobre temas relacionados aos efeitos da pandemia de Covid-19 na região, democracia e proteção ambiental. Biden citou que 45% das mortes pela doença no mundo ocorreram nas Américas. Pode-se compreender esse dado como o resultado direto da falha das campanhas de imunização e do avanço do negacionismo na região. Essas perdas humanas se somaram à contração da economia regional, deixando milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza.
No geral, o discurso de Biden teve um tom de defesa ao multilateralismo, afirmando que “a questão não é mais o que os EUA podem fazer pelas Américas, mas o que é possível de ser feito em conjunto como um continente”, numa paráfrase da célebre frase de John Kennedy: “Não pergunte o que seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer por seu país”.
O discurso do presidente argentino, Alberto Fernandez, por sua vez, teve um tom surpreendente duro de crítica aos Estados Unidos. Fernández, também presidente da Comunidade de Estados Latino Americanos e Caribenhos (CELAC), avisou que falaria pelos ausentes. No início de sua intervenção, criticou a exclusão de Cuba, Venezuela e Nicarágua, afirmando que o país anfitrião da cúpula não tem o direito de vetar convidados. O dirigente argentino também criticou os bloqueios econômicos contra Cuba e Venezuela, o endividamento “insustentável” dos países junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), e defendeu a soberania argentina sobre as Ilhas Malvinas. Além disso, aproveitou o discurso para criticar a atuação da Organização dos Estados Americanos (OEA) no golpe de Estado que derrubou o presidente boliviano Evo Morales em 2019, e encerrou convidando o presidente Biden à participar da próxima plenária da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).
O presidente chileno, Gabriel Boric, também endossou no seu discurso as críticas à exclusão dos três países, o bloqueio econômico contra Cuba, e aproveitou para falar sobre os dois pilares da campanha que o elegeu, a proteção ao meio ambiente e questões de gênero.
Já os “excluídos” se reuniram em Havana para um encontro do bloco da Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA) e declararam que a decisão estadunidense foi discriminatória, ao negar a importância de Cuba, Venezuela e Nicarágua no continente. Além disso, o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, expressou gratidão ao seu colega López Obrador, afirmando que “vozes firmes e corajosas, como a do presidente mexicano, se ergueram ao levantar a voz da verdade, da moralidade e da dignidade de todo um continente”, ao se negar a comparecer a Los Angeles.
A presença brasileira
A presença do presidente brasileiro Jair Bolsonaro foi criticada pela sociedade civil brasileira e por membros da comunidade internacional pelos constantes discursos que colocam em xeque as estruturas democráticas do país e as eleições livres. Num documento assinado em conjunto por cerca de 70 entidades brasileiras, e entregue ao presidente Biden no dia 7 de junho, movimentos negros, indígenas, ambientalistas, defensores da democracia e dos direitos humanos ressaltaram a preocupação da presença de Jair Bolsonaro, alegando que ele utilizaria a Cúpula como palanque para reforçar ssua pregação antidemocrática.
Bolsonaro defendeu seu governo de críticas, com o uso de afirmações logo contestadas. O presidente citou as críticas feitas em relação à lentidão na ação do governo para prestar ajuda na procura do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, que desapareceram na região do Vale do Javari no dia 5 de junho. O mandatário afirmou falsamente que as Forças Armadas e a Polícia Federal foram acionadas desde o primeiro momento, quando se soube dos desaparecimentos. Sobre o recorde de desmatamento da Amazônia e da ação ativa do governo federal em desrespeitar o meio ambiente, Bolsonaro afirmou que o Brasil é um dos países que mais preservam a natureza no mundo.
O líder brasileiro aproveitou para fazer um aceno aos seus apoiadores, afirmando que “temos um governo que acredita em Deus, respeita seus militares e é favorável à vida desde sua concepção, defende a família e deve lealdade a seu povo”.
Acordos polêmicos
No dia 8 de junho, em um evento paralelo à Cúpula, a administradora da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), Samantha Power, em apoio às iniciativas do governo Biden-Harris, anunciou uma assistência de US$331 milhões para a América Latina e Caribe, que serão destinados para ajuda humanitária mais imediata, suprindo demandas mais básicas como higiene e medidas sanitárias, e o combate a curto e médio prazo à crescente insegurança alimentar na região. A quantia é nitidamente irrisória diante das carências continentais. Samantha citou como causas da insegurança alimentar o aumento dos preços dos alimentos, dos combustíveis e derivados, e a inflação generalizada causada pela pandemia da covid-19, as crises climáticas e a guerra na Ucrânia.
Vale ressaltar que a atuação da USAID na América Latina têm recebido críticas de países desde a década passada, como a Bolívia de Evo Morales que encerrou as atividades do órgão no país em 2013, de atuar de maneira intervencionista, que busca assegurar zonas de influência estadunidenses.
No último dia da cúpula, foi assinada a “Declaração de Los Angeles”, que tem como base a migração dentro das Américas, tema importante para os Estados Unidos. Segundo comunicado da Casa Branca, os objetivos gerais de tal acordo são a regulamentação e o gerenciamento dos processos migratórios a partir de apoios humanitários e com caráter emergencial. Apenas 20 dos 31 participantes assinaram o documento, entre eles, Argentina, Barbados, Belize, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, EUA, Guatemala, Haití, Honduras, Jamaica, México, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai. Críticos, como o ex-chanceler mexicano Jorge Castañeda, apontam que não há mecanismos sólidos para que tais medidas sejam de fato tomadas, além de ser incompatível com as políticas de imigração que vêm sendo tomadas pelos países ao norte do continente. O diretor da iniciativa de política Anti-Tráfico Sunita Jainista em Los Angeles, Joseph Villela, afirmou que tal acordo falhou em propor ideias para combater o tráfico humano.
Encontros Bilaterais
Como mencionado anteriormente, a relutância de Bolsonaro em participar da Cúpula rendeu a ele um encontro bilateral com Joe Biden, o primeiro entre os dois presidentes desde a eleição do norte-americano. Na oportunidade, foram discutidos assuntos como a situação ambiental e o agronegócio no Brasil e as eleições presidenciais brasileiras deste ano.
Sobre as eleições, Biden afirmou confiar no sistema eleitoral brasileiro, enquanto Bolsonaro, novamente, demonstrou desconfiança e reafirmou a necessidade do chamado “voto auditável”.
Sobre o meio ambiente, Bolsonaro, como de costume, espalhou informações falsas a respeito do nosso compromisso com a preservação ambiental.
Embora a declaração de Jair Bolsonaro de que o encontro com o presidente Biden “consolidou” a relação entre os países, alegando “segredo de Estado” sobre os detalhes da reunião reservada, críticos apontam para a ausência de acordos e compromissos relevantes por parte dos Estados Unidos, como a retirada de barreiras tarifárias referentes ao aço brasileiro, estabelecidas ainda no governo Trump.
Bolsonaro se reuniu ainda com o presidente da República Dominicana, Luis Abinader, o presidente do Equador, Guillermo Lasso, e com o presidente da Colômbia, Iván Duque, além de alegar ter tido conversas com outros chefes de Estado, incluindo o presidente argentino.
Em relação à IX Cúpula das Américas como um todo, a ausência do convite a países como Venezuela, Nicarágua e Cuba, assim como o subsequente boicote do México e da Bolívia à Cúpula, são fortes indícios da perda de hegemonia na América Latina por parte dos EUA. O ocorrido demonstra que, atualmente, os EUA já não tem o mesmo poder de influência regional e não é mais capaz de ditar os rumos da política entre os países americanos. Muitos analistas afirmaram que a Cúpula seria importante para demonstrar e garantir a influência estadunidense nas Américas frente à crescente influência chinesa; porém o saldo, para os EUA, não parece ser positivo. A China é o maior parceiro comercial da maioria dos países e mantém vultosos investimentos na região. Esse foi o tema oculto da Cúpula e um dos objetivos centrais de Washington: reduzir a influência do país oriental por aqui.
O Brasil, no momento, parece ser o maior representante na América Latina dos interesses estadunidenses, pois além de não ter se juntado ao México e à Bolívia no boicote à Cúpula, não houve nenhum posicionamento crítico em relação à ausência do convite aos países mencionados anteriormente. Também é sabido que o governo Bolsonaro, assim como os EUA, são avessos àqueles países e seus governos, e provavelmente compartilham da mesma opinião do país anfitrião a respeito do convite.
A história da Cúpula das Américas
A Cúpula das Américas é um evento que reúne líderes de países das Américas do Norte, do Sul, Central e do Caribe e ocorre aproximadamente uma vez a cada três ou quatro anos desde 1994. É a única reunião em que comparecem todos os líderes dos países do continente americano. Segundo a Organização dos Estados Americanos (OEA), que abriga o evento, a Cúpula e seus fóruns de partes interessadas têm como objetivo promover a cooperação visando o crescimento econômico inclusivo e a prosperidade em todo o continente. Ainda de acordo com os textos promocionais, a Cúpula baseia-se em ideias de democracia, direitos humanos, liberdades fundamentais, dignidade do trabalho e livre iniciativa, a cúpula reúne- além dos líderes políticos dos países participantes- organizações da sociedade civil, representantes de comunidades indígenas, líderes cívicos, empresários e jovens empreendedores. Através dessa gama diversificada de participantes, é promovido um diálogo e o desenvolvimento de planos de ação, com o intuito de enfrentar os desafios e oportunidades enfrentados pelos povos das Américas.
Em relação à organização e estrutura, usualmente, o governo do país-sede atua como coordenador do processo e o anfitrião anterior atua como vice-coordenador. A partir disso, cada Cúpula ao longo dos anos se concentrou em uma área essencial de cooperação de interesse de todos os países das Américas, segundo os textos de divulgação.
A primeira Cúpula das Américas foi realizada em dezembro de 1994, em Miami, quando Bill Clinton era presidente dos Estados Unidos. A reunião concentrou 34 chefes de Estado, com exceção de Cuba, e apresentou dois documentos finais, uma Declaração de Princípios e um Plano de Ação. Com o objetivo central de promover a prosperidade regional, acordou-se a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). É preciso lembrar que a Cúpula acontecia logo após a queda dos regimes socialistas do leste europeu e os EUA exerciam plenamente seu unilateralismo no plano global.
A segunda edição foi realizada em solo chileno, em 1998, e teve como objetivo debater questões educacionais, e a criação de metas para o fortalecimento democrático na região. A terceira edição foi realizada no Canadá, em 2001, tendo como um marco histórico a criação da Carta Democrática Interamericana. Em 2005, a quarta edição, na Argentina, tinha como tema a implementação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Contudo, os líderes não conseguiram chegar a um acordo, fazendo com que a proposta fosse rejeitada. Nesta edição ficou claro que o propósito não declarado da Cúpula era de ser um canal para o Departamento de Estado dos Estados Unidos exercerem sua supremacia regional. A recusa à Alca se deu quando governos de centro e de centro-esquerda haviam sido eleitos em vários países da América do Sul.
A quinta edição ocorreu em Trinidad e Tobago, no ano de 2009, e é lembrada pela aproximação entre EUA e Venezuela, em que Hugo Chávez entregou o livro As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, a Barack Obama. Em 2012, a edição na Colômbia foi marcada pela tentativa de aproximação com Cuba, em que Juan Manuel Santos, presidente colombiano, convidou Raúl Castro, líder cubano. No entanto, o convite provocou a desistência de alguns chefes de Estado e retaliação por parte dos Estados Unidos. A ilha caribenha acabou não participando.
Ao contrário de 2012, na Cúpula de 2015, no Panamá, Cuba esteve presente. O evento foi marcado pela aproximação cubana e norte-americana, liderados por Raúl Castro e Barack Obama, respectivamente.
A edição de 2018, no Peru, teve como objetivo debater questões sobre a corrupção que atinge as democracias do continente americano. A ocasião retrocedeu a aproximação evidenciada na Cúpula anterior, e foi marcada pela primeira vez que um líder norte-americano se ausentou da reunião, já que Donald Trump recusou o convite de Pedro Kuczynski, líder peruano.
Exclusão e boicote
Em 2021, a eleição de Joe Biden como presidente dos Estados Unidos trouxe o compromisso do país em romper com a política externa isolacionista do antigo governo, promovendo uma reaproximação com a Europa e o hemisfério ocidental. Neste contexto, os Estados Unidos sediaram a IX Cúpula das Américas, realizada na cidade de Los Angeles, de 6 a 10 de junho de 2022. Tendo por tema “Construir um futuro sustentável, resistente e equitativo”, o acontecimento foi marcado por incertezas, polêmicas e protestos.
No início de maio, representantes do governo Biden já haviam afirmado que três países não seriam convidados para a IX Cúpula das Américas: Cuba, Nicarágua e Venezuela. O argumento utilizado pelos Estados Unidos foi que não são países democráticos, violando a Carta Democrática Interamericana, firmada na III Cúpula.
Diante disso, o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador anunciou que não participaria. Foi logo seguido pelo presidente boliviano Luis Arce. Ambos enviaram apenas seus ministros de Relações Exteriores. Os presidentes da Guatemala e de Honduras também decidiram boicotar o encontro. Argentina e Chile levantaram críticas à política excludente de Washington, mas confirmaram suas presenças. E países do caribe, como Antígua e Barbuda, Granada e São Cristóvão e Nevis, rechaçaram a exclusão em cúpula da ALBA-TCP. E mesmo o Brasil hesitou em participar até duas semanas antes.
A ausência de Andrés Manuel López Obrador à cúpula, terceiro maior país da região, é um golpe duro aos EUA, por ser seu maior parceiro comercial e ter um papel central na discussão de imigração – tema no qual a Casa Branca visava construir algum acordo. Obrador mostrou-se firme na sua recusa, afirmando: “É a Cúpula das Américas ou a Cúpula dos Amigos da América (referindo-se aos Estados Unidos)?”
A série de boicotes levou os Estados Unidos a levantarem esforços para contornar a situação, enviando representantes de alto escalão aos países. A vice-presidente Kamala Harris foi despachada para Honduras, Guatemala e México, países fundamentais para conter a imigração para os Estados Unidos. A primeira-dama Jill Biden e sua filha visitaram o Equador, Panamá e Costa Rica, com o objetivo de “enfatizar a importância da parceria com os Estados Unidos”, segundo comunicado oficial do país. E Brian Nichols, subsecretário de Estado para o Hemisfério Ocidental, viajou durante uma semana no Caribe.
Jair Bolsonaro também mostrou-se relutante em comparecer à Cúpula, mas por motivos diferentes. Bolsonaro era um grande entusiasta do governo Trump, tendo sido um dos últimos a cumprimentar a vitória de Joe Biden na eleição presidencial. No entanto, após a visita de Chris Dodd, ex-senador democrata que foi indicado pela Casa Branca para convencer líderes latino-americanos à confirmar presença na Cúpula, ao Brasil, a promessa de uma reunião bilateral com Biden convenceu Bolsonaro a ir.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Nona Cúpula das Américas. United States Department of State. jun. 2022. Disponível em: https://www.state.gov/cupula-das-americas-about-pt/#what Acesso em: 09 de jun. 2022.