28 de junho de 2022
Por Nicole Lima (Foto: Unsplash)
Na última sexta feira, 24 de junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu a favor da proibição do aborto no Mississippi após 15 semanas de gestação. A decisão anula as consequências do emblemático caso Roe vs Wade, que em 1973 tornou o aborto legal em todo o território. A sentença remete aos estados a decisão final, sob a alegação de que os direitos da vida privada, estabelecidos na Constituição, não envolvem o direito à interrupção da gravidez. A medida, aprovada graças à maioria conservadora na Suprema Corte, é mais um episódio do embate entre a direita republicana e os democratas.
Já no Brasil, gerou revolta o caso de uma juíza de Santa Catarina que impediu uma menina de 11 anos de interromper uma gravidez resultante de um estupro, como permitido pelo Código Penal. O caso veio a público e o procedimento foi realizado na última quarta-feira, 22 de junho.
As eleições presidenciais brasileiras se aproximam e o ex-presidente Lula, candidato com larga vantagem nas pesquisas, já falou abertamente sobre a questão. Para ele, o aborto é uma questão de saúde pública. Em seu plano de governo, divulgado na última semana, a menção feita na versão anterior do programa à “garantia de direitos sexuais e reprodutivos às mulheres” foi eliminada. A mudança representa um recuo no tema para angariar votos dos setores mais conservadores, como os evangélicos, ferrenhos opositores da legalização do aborto no país. os países onde tais prerrogativas se tornaram lei – como Argentina, Chile e Colômbia – houve um forte movimento social em favor da matéria. O mesmo se deu nos Estados Unidos há meio século.
O debate em torno do tema é longo e espinhoso. O movimento feminista brasileiro, principalmente desde o fim da ditadura militar, tenta a duras penas inserir o direito ao aborto no debate político. A reversão do direito, agora, nos Estados Unidos, tem por base a crescente influência do conservadorismo impulsionado durante e após o governo de Donald Trump. No Brasil, diante do atual governo de extrema-direita, a legalização de tal direito parece estar cada vez mais longe.
O direito ao aborto nos Estados Unidos
O emblemático caso Roe vs Wade, decidido em 1973, foi responsável por garantir o direito ao aborto às mulheres estadunidenses em todos os casos, até o segundo trimestre de gravidez. Norma McCorvey, garçonete de Dallas, sob o pseudônimo de Jane Roe, abriu o caso contra Henry Wade, promotor do estado, que instituiu uma lei que proibia o aborto, exceto por perigo à vida da mulher.
Roe defendeu que o direito ao aborto é parte do direito à privacidade, previsto na 14º emenda, que elucida: “Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade, ou bens sem processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis”.
Quando a emenda dos direitos da vida privada foi adotada, em 1868, ¾ dos estados tinham o aborto como crime em todos os períodos da gravidez. No período de Roe vs Wade, trinta estados ainda proibiam o aborto em qualquer caso. A Suprema Corte, em 1973, decidiu que o direito estava previsto na Constituição Federal, portanto, não poderia ser negado na jurisdição dos estados.
O governo Trump e o começo do desmonte do direito ao aborto
Após a eleição do presidente de extrema-direita Donald Trump, em 2016, o direito das mulheres passou a ser duramente contestado, principalmente pelos ideais ultra conservadores do presidente e de seu vice, Mike Pence, conhecido como um importante ativista antiaborto até mesmo antes de vencer o pleito. Já em 2017, 19 Estados aprovaram 63 restrições à prática do aborto e, nos seis primeiros meses do governo Trump, já havia 431 restrições à medida em estados do país.
A reversão do direito ao aborto nos Estados Unidos
A Suprema Corte decidiu rever o direito ao aborto tido como constitucional em 1973 ao afirmar que não havia “meias-permissões” inclusas na decisão prévia e que, para aprovar a lei de Mississippi, o caso Roe deveria ser reafirmado ou revertido.
A decisão da Suprema Corte foi a favor da reversão de Roe, por 6 votos a 3, em uma corte com maioria conservadora. Os juízes a favor do retrocesso afirmaram que o direito ao aborto não está previsto na Constituição, como alega a decisão de 1973. O documento da decisão também cita argumentos em torno dos “interesses do feto” e “proteção à vida”.
A revisão da jurisprudência permite que os estados regulem o direito ao aborto, o que já fez com que 22 estados declarassem a revisão de suas permissões sobre o tema. Em Dakota do Sul, Louisiana e Kentucky, por exemplo, o direito já foi automaticamente banido, após acionarem as chamadas “leis de gatilho”, aprovadas previamente com a ação de entrarem em vigor imediatamente ou trinta dias após a aprovação ou reversão de algum caso que proibia a instituição da lei requerida.
Após a decisão da Corte, diversos protestos se espalharam pela internet e pelas ruas do país, a maioria contrários à decisão, embora alguns grupos comemorem a resolução. Alimentados pelo conservadorismo religioso sustentado por Trump, polarizam ainda mais a discussão sobre o direito ao aborto no país.
A luta pelo direito ao aborto no Brasil
O aborto é permitido no Brasil desde 1940, em casos de estupro e risco à vida da mulher e, desde 2012, em casos de anencefalia do feto. Nenhuma das inúmeras propostas de legalização do direito ao aborto voluntário e dos imensos esforços dos movimentos feministas brasileiros lograram sucesso. A discussão em torno da questão perpassa necessariamente pela influência dos valores morais religiosos no país, principalmente após a eleição de Bolsonaro, em 2018.
Após o fim da ditadura militar, a Constituição de 1988 assegura novos direitos às mulheres, como igualdade jurídica e proteção contra violência intrafamiliar, quando ainda era inexistente a lei contra violência doméstica. Durante sua elaboração, foi escrita à Constituinte a Carta das Mulheres, com princípios e reivindicações, entre eles o direito ao aborto. A discussão do tema, no entanto, foi travada pela Igreja Católica, expressivamente contrária à permissão do aborto.
A partir de 1989, há a ampliação dos estabelecimentos de saúde com preparação e treinamento para realização de abortos, mas sem novas mudanças na legislação brasileira. Apenas em 2012 foi adicionado mais um “permissivo”, a autorização do aborto em casos de anencefalia fetal.
O governo Bolsonaro e o completo descaso aos direitos das mulheres
As atrocidades cometidas contra a proteção dos direitos humanos durante o governo Bolsonaro são várias e incluem a garantia dos direitos da mulher e o direito ao aborto legal. Desde o início de sua campanha em 2018, seus discursos, alianças e propostas já visavam desqualificar a discussão em torno dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, se apoiando no fundamentalismo religioso.
O antigo Ministério de Direitos Humanos passou a chamar-se Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos após a eleição e excluiu as premissas em torno das minorias sexuais, que visavam garantir proteção à população LGBT+. Em outubro de 2019, foi criada a Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, com o objetivo de defender temas como a educação doméstica e aprovar o Estatuto da Família e o Estatuto do Nascituro, que incorporam concepções de casais formados apenas por homens e mulheres e reafirmam o aborto como crime. Outra proposta é a chamada PEC da Vida, projeto de emenda constitucional de 2019 que visa alterar o artigo 5º da Constituição para explicitar o direito à vida como garantido desde a concepção.
Em 2020, por exemplo, a então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, participou pessoal e intensamente na frente contrária à realização de um aborto de uma menina de 10 anos que havia sido estuprada pelo tio. A ministra é acusada de ter enviado assessores aliados para a cidade da menina para tentar impedir que realizasse o procedimento a que tem direito. Houve protestos na frente do hospital e grande repercussão do assunto.
Nas últimas semanas, a revolta nacional se deu em torno do caso da juíza de Santa Catarina que, em áudio divulgado pelo The Intercept Brasil, induz uma criança de 11 anos, estuprada, a desistir do aborto legal previsto no Código Penal. A menina, ao procurar o hospital universitário da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), teve seu caso encaminhado à justiça após recusa dos médicos em realizar o procedimento em razão do número de semanas (22) da gestação. O regimento interno do hospital permite o procedimento até 20 semanas. O Código Penal, no entanto, ao garantir o direito ao aborto em casos de violência sexual e risco à vida da mulher, não exige qualquer interferência judicial e não impõe limitação no número de semanas para a interrupção. Após a enorme repercussão do caso, a menina, que estava mantida há 40 dias em um abrigo por decisão da juíza, para que fosse impedida de todas as formas de realizar o aborto, conseguiu permissão para retirada do feto e retornou para casa.
Uma cartilha lançada pelo Ministério da Saúde em 2022 (Atenção Técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento) traz os ideais do governo Bolsonaro sobre o tema já em seu título, ao utilizar a palavra “prevenção” em primeiro lugar, em um documento oficial que deveria visar o treinamento dos profissionais de saúde para realizar o aborto legal e seguro. A cartilha diz que não existe aborto legal no Brasil, à exceção de casos com “excludente de ilicitude”. O documento cita o direito à vida como prioridade máxima: “Não obstante, no ordenamento jurídico brasileiro, a vida intrauterina sempre recebeu proteção, cível e penal. No âmbito do Direito Civil, até mesmo os direitos patrimoniais do nascituro são assegurados. Não haveria lógica em garantir o direito ao patrimônio, sem assegurar o direito pressuposto, qual seja o direito a nascer”. Diversas organizações se reuniram para elaborar um documento que pede a revogação da cartilha do Ministério da Saúde.
Como fica o debate nacional e internacional sobre o tema?
O Brasil infelizmente não faz parte do recente progressismo da América Latina em relação ao direito ao aborto. Uma maior integração entre os países da região poderia inspirar o movimento de mulheres brasileiras a entrarem na “maré verde”, movimento pela instituição do direito ao aborto que se espalhou pelos países vizinhos.
O Brasil, no entanto, afogado em uma profunda crise econômica, política e democrática, parece ainda não conseguir encontrar forças suficientes para a construção de uma mobilização social que conquiste de volta os diversos direitos retirados nos últimos quatro anos e reitere uma nova consciência sócio-política na população.
Os Estados Unidos, governado por um presidente de extrema-direita também por quatro anos, continua sofrendo constantemente com novas ameaças à democracia e aos direitos humanos por influência do forte conservadorismo dos eleitores de Trump, mesmo após a vitória democrata.
O Brasil tem pela frente complexas lutas pela restituição de direitos, mas não se pode tirar de vista a importância da discussão da legalização do aborto no país. A reeleição de Bolsonaro representaria mais quatro anos de retrocessos que podem ser permanentes para a sociedade brasileira. Já a eleição de um governo tido como progressista, será capaz de representar mudanças na luta pelo direito ao aborto no Brasil?
“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.” – Simone de Beauvoir