A nova estratégia americana para a África

23 de agosto de 2022

Por Letícia Pereira, Mohammad Nadir, Gabriel de Castro Soares e Flavio Francisco (Foto: Reprodução Twitter @DIRCO_ZA)

 

EUA questionam presença da Rússia e China e podem levar o continente a tomar partido na nova guerra fria que paira no sistema internacional

 

Embora o continente africano tenha índices sociais muito abaixo do padrão de outros continentes, ainda é um espaço de riquezas naturais considerado estratégico para várias potências do sistema internacional. Após décadas enfrentando crises econômicas e conflitos internos, parte deles causados pelas rivalidades étnicas, os países africanos passaram a reorganizar agendas e compromissos para responderem às necessidades de uma economia global que passava por profundas mudanças na década de 1990. A reestruturação da Organização da Unidade Africana, que teve como consequência a criação da Unidade Africana, consolidou uma institucionalidade capaz de garantir a constituição de agendas coletivas no continente.

Este novo arranjo institucional possibilitou a coordenação entre os países em diferentes frentes, envolvendo aspectos econômicos, militares e humanitários. Um dos mais recentes, e mais importante, foi a criação da Zona de Comércio Livre Continental Africana, que começou a operar em 2021. Entre os objetivos do bloco econômico está fomentar as relações comerciais no próprio continente e mudar o patamar dos países nas relações com as grandes potências. Esse movimento é importante em um contexto de acirramento da concorrência entre as economias ocidentais e a China, no qual a África torna-se um espaço onde se reproduz essa disputa.

A visita de Blinken à África

No dia 7 de agosto, o secretário dos EUA Antony Blinken iniciou uma viagem para alguns países do continente africano como a África do Sul, República Democrática do Congo e Ruanda. Duas semanas antes, Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia, havia passado por países africanos como Egito, República do Congo, Uganda e Etiópia. Um dos objetivos que vem sendo difundido sobre a visita de Blinken à África é justamente a tentativa de afrontar a visita e o crescimento russo na região.

No dia 25 de julho o presidente da França, Emmanuel Macron, também esteve em alguns países africanos. Todas essas visitas reforçam a ideia de uma nova competição das grandes potências em exercer influência no território africano, em um momento em que a China vem tendo destaque com seus investimentos em infraestrutura. Blinken não concorda com a ideia e em entrevista à RFI de Pretória, deixou claro que sua visita tem como objetivo estabelecer parcerias com foco no desenvolvimento africano e buscar a paz em conflitos como os que ocorrem entre a República Democrática do Congo e Ruanda (entenda mais sobre esse conflito na nossa news “As tensões nos grandes lagos”).

A nova estratégia americana para África

O documento que acaba de ser publicado na semana passada (agosto 2022) traz vários elementos da estratégia americana sobre o continente africano nos próximos anos. Sua leitura mostra a importância da África Subsaariana para o avanço das prioridades globais. Com crescimento demográfico, o mais rápido do mundo, a África vai constituir 25% da população mundial em 2050. Em termos comerciais é uma das maiores zonas de livre comércio do mundo. Geograficamente, a África possui um dos ecossistemas mais diversificado com recursos naturais ilimitados e principalmente os minérios mais raros. Em termos de influência política, a África representa na ONU um dos maiores grupos com 28% de voto e com três membros não permanentes no Conselho de Segurança, além da sua presença noutras instâncias internacionais, o que faz da África um player de uma dimensão maior. Do ponto de vista geoestratégico, a África é situada ao longo das principais linhas marítimas de comunicação e comércio no Oceano Atlântico, Oceano Índico e Golfo de Aden. No global, o continente africano tem todas as condições para desempenhar um papel crucial no enfrentamento dos desafios tais como as consequências da pandemia da COVID-19; a crise climática; a maré global de retrocesso democrático;  a insegurança alimentar global; a equidade e igualdade de gênero; fortalecer um sistema internacional aberto e estável; moldar as regras do mundo em questões vitais como comércio, cibernética e tecnologias emergentes; e enfrentar a ameaça de terrorismo, conflito e crime transnacional.

No entanto e apesar de todo o entusiasmo do presidente Joe Biden, que quer  reformular a abordagem estadunidense para a África, não deixa ser curioso que a nova estratégia americana obedeça essencialmente aos  -como sempre- interesses de segurança nacional dos EUA, o que levanta as eternas suspeições sobre a real vontade e objetivos de Washington nessa nova investida ao continente africano.

Seja como for, a nova estratégia norte-americana visa quatro objetivos principais na África Subsaariana:

1. Fomentar a abertura de sociedades abertas

Com isso os Estados Unidos querem garantir que a região permaneça aberta e acessível a todos e que os governos e o público possam fazer as suas próprias escolhas políticas, de acordo com as obrigações internacionais.  Essa abertura passa segundo a nova estratégia por:

●       Promoção  da transparência e responsabilidade dos governos

●       Aumento do foco no estado de direito, justiça e dignidade

●  Ajuda aos países africanos a alavancar de forma mais transparente os seus recursos naturais para o desenvolvimento sustentável

2. Entregar dividendos democráticos e de segurança

A nova estratégia americana procura capacitar a região da África Subsaariana a renovar as suas democracias, bem como antecipar, prevenir e abordar conflitos emergentes e de longa duração. Ao abordar simultaneamente estes desafios e reafirmar que a democracia oferece benefícios tangíveis, os Estados Unidos querem oferecer escolhas positivas aos africanos à medida que determinam o seu próprio futuro. Isso inclui:

●   Trabalhar com aliados e parceiros regionais para conter a recente onda de autoritarismo e conquistas militares

●       Apoiar a sociedade civil, empoderar grupos marginalizados, centralizar as vozes de mulheres e jovens e defender eleições livres e justas

●    Melhorar a capacidade dos parceiros africanos para promover a estabilidade e segurança regionais

●       Reduzir a ameaça de grupos terroristas

3. Promover a recuperação da pandemia e oportunidades econômicas

A administração Biden por meio da nova estratégia visa promover a recuperação de África Subsaariana da pandemia da COVID-19 e as suas consequências econômicas e sociais. Segundo o documento, evidencia-se uma vontade dos Estados Unidos em trabalhar com governos regionais e parceiros internacionais para construir economias africanas mais estáveis e inclusivas por meio:

●      Políticas e programas para encerrar a fase aguda da pandemia da COVID-19 e desenvolver capacidades para aumentar a preparação para a próxima ameaça à saúde

●       Apoiar iniciativas de produção de vacinas e outras contramedidas médicas

●      Promover uma trajetória de crescimento mais forte e sustentabilidade da dívida para apoiar a recuperação económica da região, inclusive através da Parceria para Infraestrutura e Investimento Global (PGII), Prosper Africa, Power Africa, Feed the Future e uma nova iniciativa para transformação digital

●       Estabelecer parcerias com países africanos para reconstruir o capital humano e os sistemas alimentares que foram ainda mais enfraquecidos pela pandemia e pela guerra da Rússia contra a Ucrânia

4. Apoio à conservação, adaptação do clima e a uma transição de energia justa. Para alcançar essa meta, Washington quer:

Estabelecer parcerias com governos, sociedade civil e comunidades locais para conservar, gerir e restaurar os ricos ecossistemas naturais do continente

Apoiar os países nos seus esforços para minimizar e adaptar-se aos impactos de um clima em mudança, incluindo o aumento da resiliência da comunidade, economia e cadeia de suprimentos

●       Trabalhar em estreita colaboração com os países para acelerar as suas transições justas para um futuro de energia limpa, acesso à energia e segurança energética

●       Buscar parcerias público-privadas para desenvolver e proteger de forma sustentável os minerais críticos que fornecerão tecnologias de energia limpa

 

Eis os pilares da nova estratégia norte-americana para a África Subsaariana durante a próxima década. Todavia, e apesar de tudo isso, a estratégia americana tem elementos que fragilizam seus intuitos. Entre esses elementos está a obsessão americana pela competição russo chinesa no continente africano. A nova estratégia está repleta de críticas à presença russa e chinesa no continente africano.

No documento U.S. Strategy Toward Sub-Saharian Africa, há referências claramente anti-Rússia e China de forma a descredibilizar a presença ativa deles no continente. Uma das passagens do documento diz que: “A República Popular da A China (RPC) vê a região como uma arena para desafiar a ordem internacional, promover seus próprios e estreitos interesses comerciais e interesses geopolíticos, minando a transparência e a abertura, e enfraquece as relações dos EUA com povos e governos africanos. A Rússia vê a região como um ambiente permissivo para empresas militares privadas e paraestatais, muitas vezes fomentando a instabilidade para fins estratégicos e financeiros. A Rússia usa seus laços econômicos e de segurança, bem como a desinformação, para minar a oposição de princípios dos africanos à invasão da Ucrânia pela Rússia”.

O que leva a concluir que os Estados Unidos procuram -não obstante o otimismo da nova estratégia- transformar a África num campo de batalha, e assim levar o continente africano a tomar partido na nova guerra fria que paira no sistema internacional.

Nesse sentido, a nova estratégia estadunidense peca por querer condicionar as escolhas soberanas dos países africanos de seus parceiros políticos e econômicos segundo seus próprios e legítimos interesses nacionais.

Que futuro e qual o papel de África dentro da competição das potências

Durante a presidência de Trump, a partir de 2018, foram visíveis mudanças nas estratégias dos Estados Unidos em relação a sua projeção sobre o continente africano, promovendo um gradual desengajamento americano em relação às pautas do bloco. Para muitos dos estrategistas de Washington naquele momento, as prioridades dadas sobre o combate a jihadistas -com missões em Camarões, Níger, Nigéria- e o controle institucional na região -Somália- acabariam irrelevantes frente a intensificação da competição das potências globais, esse ideário se consumou no quase total desligamento dessas atividades até o fim do mandato do presidente.

Essas suposições provaram-se erradas, a África emerge como um dos principais locus para a projeção dessa competição. O embate aumentará a demanda por participação ativa e continuada dos americanos, via o combate ao terrorismo e proteção dos princípios democráticos e de livre mercado nas regiões mais voláteis do continente, na intenção de afastar a influência de seus principais oponentes – China e Rússia.

A China vem empreendendo desde 2013 sobre a Iniciativa Cinturão e Rota da Seda, dentre outros meios de engajamento econômico -programas de crédito e financiamento, atrativos em volume e custo, de forma que não seriam passíveis de negociação em outras redes financeiras globais para a expansão de sua influência e acesso de mercados africanos. A promessa de adesão seria o incremento e acesso a projetos de infraestrutura entre os países partícipes. Os resultados já são visíveis, a China tornou-se rapidamente um sócio profundo para os governos africanos, figurando como o principal parceiro comercial do continente.

As iniciativas russas sobre a região centram-se em sua projeção sobre o mediterrâneo oriental, mais especificamente sobre a manutenção de seu acesso sobre o porto naval localizado no Mar Vermelho. O país foca na busca por oportunidades de extração mineral e apoio direto a titulares e aliados próximos, via investimentos assimétricos em segurança como acordos de troca de armas por recursos, envio de mercenários, acordos turvos de influência, ao contrário de chineses e americanos, que promovem investimentos diretos.

A África coloca-se em um papel de destaque, favorecida pela sua disponibilidade de recursos naturais, a possibilidade de expansão produtiva, bônus populacional e coordenação internacional em bloco, essas características chamam atenção ao continente como agente ativo para a formação de um futuro sistema internacional. Especialistas indicam que o acesso aos mercados africanos se dará por políticas especializadas para cada país, abastecidas ou não pelo know-how de cada uma das potências que as disputarem, uma situação ambígua que possibilitaria novas estruturas de dependência do continente-endividamento ou dependência por crédito, ou a imersão de um novo pragmatismo regional, aplicado em bloco, dependente do fortalecimento ou não dos organismo e instituições multilaterais da região. 

Referências

Macron em África: Uma maratona “contra China e Rússia” – https://www.dw.com/pt-002/macron-em-%C3%A1frica-uma-maratona-contra-china-e-r%C3%BAssia/a-62595918

Sergey Lavrov visita África em tempos de isolamento diplomático – https://www.dw.com/pt-002/sergey-lavrov-visita-%C3%A1frica-em-tempos-de-isolamento-diplom%C3%A1tico/a-62602046

Blinken inicia giro pelo continente africano tentando frear influência russa na região – https://www.rfi.fr/br/%C3%A1frica/20220807-blinken-inicia-giro-pelo-continente-africano-visando-frear-influ%C3%AAncia-russa-na-regi%C3%A3o

Em visita à África, Blinken diz que interesse americano no continente independe da Rússia – https://www.rfi.fr/br/%C3%A1frica/20220809-em-vista-%C3%A0-%C3%A1frica-blinken-diz-que-interesse-americano-no-continente-independe-da-r%C3%BAssia

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