22 de agosto de 2023
Por Dante Apolinário, Leonardo Poletto Di Giovanni,
Lucas Portari, Luciana Araujo e Nícolas de Paula (Imagem: Regina Rêgo/Agência Brasil)
Por quê o direcionamento político e econômico da Petrobras está diretamente ligado à inserção internacional do Brasil? Por que a política de preços adotada pela Petrobras tem a ver com soberania? O quê os dividendos da Petrobras têm a ver com relações econômicas internacionais? E a participação da Petrobras na transição energética, o que tem a ver com a dinâmica internacional? Essas são algumas das questões que este artigo pretende apresentar, no contexto da trajetória recente da Petrobras, para contribuir com o debate sobre qual deve ser o rumo da empresa nos próximos anos.
Introdução
Na campanha eleitoral do ano passado, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva já tinha deixado claro que desejava mudanças na atuação da Petrobras para colocar a empresa de novo a serviço do país e não unicamente dos interesses financeiros. Nesse artigo, tentamos explicar o que está em jogo.
Desde o início, pelo seu tamanho e importância estratégica, a Petrobras sempre esteve ligada à questão da soberania ou da inserção econômica internacional do Brasil. A sua própria criação foi fruto da campanha nacionalista O Petróleo é Nosso. Nestes quase 70 anos de existência, diferentes governos e direções da empresa atuaram de formas distintas – e até mesmo antagônicas – no direcionamento da Petrobras. Antes mesmo da descoberta e início da produção dos campos do pré-sal, a Petrobras já havia perdido o seu acento, mas sobretudo o seu monopólio sobre a exploração de petróleo e parte do seu caráter público com a abertura de capital operados pelo governo FHC.
Nos dois primeiros governos Lula (2003-2010), passou a ter um papel central. Toda a trajetória de descoberta, pesquisa, exploração e início de produção do pré-sal mobilizou dezenas de milhares de trabalhadores e diversos setores industriais e tecnológicos. Foi criada toda uma política de desenvolvimento da indústria naval e outros setores relacionados aos empreendimentos da Petrobras. A empresa era vista como um instrumento a serviço do desenvolvimento e de uma inserção mais soberana na economia internacional.
Hoje a Petrobras é uma empresa de controle estatal com capital misto. A União detém 50,26% das ações ordinárias (com direito de voto) e 36,61% do capital social total (União, BNDES e BNDESPar).
Mas por quê o direcionamento político e econômico da Petrobras está diretamente ligado à inserção internacional do Brasil? Por quê a política de preços adotada pela Petrobras tem a ver com soberania? O quê os dividendos da Petrobras tem a ver com relações econômicas internacionais? E a participação da Petrobras na transição energética, em que se relaciona com a dinâmica internacional? Essas são algumas das questões que este artigo pretende apresentar, com base na trajetória da Petrobras, para fomentar o debate sobre qual deve ser o rumo da empresa para os próximos anos.
Histórico
O processo de internacionalização da Petrobras iniciou na década de 1970, no contexto de expansão das atividades industriais e altas taxas de crescimento econômico, logo, da demanda por petróleo. Em 1972 criou-se a Braspetro, subsidiária responsável por realizar empreendimentos no exterior, em particular na América do Sul e África. Sua atuação vem se estendendo desde então, e, na década de 1990, houve a construção do Gasbol, que liga os campos de gás da Bolívia ao mercado brasileiro. O fim do monopólio estatal na exploração do petróleo, em 1997, foi seguido de uma a perda de várias subsidiárias, por exemplo, na área petroquímica e de fertilizantes. Os governos de orientação liberal da época deram prioridade à atração de operadoras internacionais, com baixas exigências de conteúdo local (CL). Em adição, adotou-se uma política de terceirização, seguindo a tendência das empresas privadas, o que beneficiou, em particular, empresas para-petrolíferas internacionais, ao contrário das locais, que sofreram com o impedimento de contratação.
Já nos governos Lula e Dilma houve uma política robusta de transformar a enorme demanda por produtos e serviços da Petrobras em geração de renda e emprego no país. Essa política ganhou ainda mais relevância depois da descoberta do pré-sal, em 2007. Houve uma ampliação significativa da produção e exportação de petróleo durante a gestão e uma valorização da empresa de 576% entre 2003 e 2014. Além disso, a política de conteúdo local e a gestão de inserção internacional da Petrobras foi responsável pelo desenvolvimento de novas tecnologias e geração de emprego, onde em 2003, o setor abrigava 7.465 vagas, alternando para 2014, com 80 mil empregos diretos e 320 mil indiretos.
Ao mesmo tempo, nesse período, os investimentos previstos para o mercado externo no período 2006-2010 eram de US$ 7,1 bilhões, 13% do total a ser investido pela empresa. O Plano de Negócios 2008-2012 ressaltou o objetivo de crescimento da Petrobras. Aos poucos, a companhia foi consolidando sua experiência internacional que contribuiu para colocá-la como um dos grandes players mundiais no negócio do petróleo. A gestão da exploração do pré-sal foi pensada para fortalecer o desenvolvimento e a soberania econômica nacional.
Desmonte
Aqueles que acompanharam o OPEB nestes últimos anos já conhecem um pouco da história de desmonte da Petrobras desde o início do governo Temer até o final do governo Bolsonaro. Pela importância que a empresa possui na economia e inserção internacional brasileira e na sua capacidade de influenciar na dinâmica econômica e social do país, este foi um tema recorrente das discussões deste Observatório. A correta compreensão das administrações Temer e Bolsonaro, no que tange à Petrobras, perpassa por distintos norteamentos político-econômicos, quando comparados às gestões Dilma e Lula. O governo transitório de Temer priorizou a abertura das áreas do pré-sal para empresas internacionais e uma rápida monetização, a partir de uma aceleração dos leilões, priorizando interesses financeiros desvinculados de uma estratégia de desenvolvimento industrial-tecnológico. O governo Bolsonaro deu continuidade a essa política.
Um aspecto importante foram os cortes anunciados em 2016, uma política que iria priorizar a mera extração do petróleo bruto no Pré-sal. Enquanto isso, o setor de refino, entre outros, foi abandonado, deixando o país dependente de importação de derivados e mais vulnerável às oscilações dos preços internacionais.
Isso significou, também, uma perda da diversificação produtiva do país, possível de ser notada por meio de duas frentes. Por um lado, com o fim da política de conteúdo local (PCL), a Petrobras abre mão de garantir porcentagens mínimas de investimentos nacionais, perdendo, portanto, oportunidade de geração de emprego e renda no país. Um exemplo desse processo diz respeito ao congelamento dos investimentos para a indústria naval brasileira. A política econômica adotada seguiu o caminho – na prática – de sistemática venda de seus ativos. Na toada dos cortes da Petrobras, o Brasil se viu numa situação na qual a falta de investimentos no setor de fertilizantes fez com que saltassem seus níveis de importação do produto de 42%, em 2006, para 73% em 2016.
A ausência de uma estratégia que vinculasse o poder econômico da empresa aos interesses de médio e longo prazo do país refletiu-se também na ausência de uma política de transição energética com investimento em energias renováveis. Ao contrário, o que tinha sido feito nessa área até 2016 foi desmontado em seguida, inclusive no setor de etanol.
Se nos anos 2003-2016 a Petrobras havia sido utilizada como uma plataforma do setor de Petróleo e Gás no desenvolvimento da indústria nacional, as decisões tomadas a partir do afastamento da ex-presidenta Dilma Rousseff denotam um explícito viés de limitação da empresa à extração e exportação de petróleo cru; submissão à lógica financeiro-rentista; e privatização de ativos. O resultado dessa política pode ser visto no número referente a 2022, quando a empresa fechou o ano pagando cerca de 209 bilhões de reais em dividendos para seus acionistas. Para se ter uma ideia do quanto isso significa, a Petrobras terminou o ano de 2022 com valor de mercado de cerca de R$ 346 bi (hoje é de R$ 424 bi). Ou seja, em apenas um ano a empresa distribuiu em dividendos o equivalente a mais do que 50% do seu valor de mercado.
Num dos artigos recém publicados pela OPEB, é feita uma estruturação mais detalhada sobre os impactos dos lucros exorbitantes da Petrobras, que passaram a proporcionar aos acionistas estrangeiros. Mantendo a PPI, nos anos de 2022, foi registrado um lucro líquido de R$188,3 bilhões. Para se ter dimensão dos valores apresentados, a empresa distribuiu apenas em um ano o equivalente a mais de 60% do seu próprio valor de mercado.
Da mesma forma, se na primeira década do século XXI a projeção pela crescente demanda do pré-sal se ampliava, com a centralidade do refino em pauta, o Brasil acabou por desembocar, em 2022, como um exportador de petróleo cru e importador de seus derivados, tudo submerso num amplo – e proposital – processo de desnacionalização de seus setores estratégicos.
Nova Política da Petrobras
Construído ainda durante o governo Bolsonaro, o Plano Estratégico para 2023-2027 previa a manutenção da política de PPI, o que deixou de ser adotado desde maio de 2023. A atual gestão decidiu pelo fim do PPI, pelo menos parcialmente. Com isso, a política de preços passa a ter como referência não apenas o mercado internacional (leia-se o preço equivalente ao que custaria para um litro de combustível do Golfo do México chegar a um posto no Brasil), mas também os fatores internos de produção. A Petrobras é responsável pela maior parte da produção de petróleo no Brasil, os custos operacionais dos campos do pré-sal são muito baixos; a Petrobras possui refinarias que, apesar de não serem suficientes para abastecer 100% do mercado interno, garantem o abastecimento da maior parcela do mercado. De quem é o benefício de a Petrobras vender todos os seus derivados ao mercado consumidor brasileiro a preços de importados, sendo que para a empresa estes preços são artificiais? A formação de preços nacionais de fato é ruim… para aqueles atores – nacionais ou estrangeiros – que estão envolvidos nos negócios de importação de derivados. Daí a importância da retomada da diretriz de ampliar a capacidade de refino nacional.
Outra mudança ocorreu no início de junho. Trata-se de alterações em seu Plano Estratégico para 2024-2028, sendo que a principal diz respeito ao aumento do limite para investimentos em projetos de baixo carbono para até 15% (o limite anterior era de 6%). Tais investimentos representam ‘’um futuro mais sustentável, na busca por uma transição energética justa e segura no país, conciliando o foco atual em óleo e gás com a busca pela diversificação de portfólio em negócios de baixo carbono’’.
Já no final de julho, a companhia anunciou a sua nova política de dividendos, diminuindo de 60% para 45% do seu fluxo de caixa livre. Como mencionado anteriormente, um maior ou menor pagamento de dividendos está diretamente relacionado a remessas que são feitas para agentes privados no exterior. Os cálculos e projeções de dividendos da Petrobras sob a nova política, feitos por diversas casas de análises, mostram que estes seguem muito maiores do que a média das empresas brasileiras ou de petróleo internacionais.
Recentemente foi anunciado que a Petrobras terá 47 projetos incluídos no novo PAC, com investimentos de R$ 323 bi, em diversas áreas. Alguns dos objetivos são a ampliação do parque de refino e também foco na produção de biocombustíveis – uma das fronteiras tecnológicas da transição energética e economia de baixo carbono. O aumento da capacidade de refino nacional é importante para garantir a total soberania de combustíveis e deixar para o passado qualquer pressão de desabastecimento ou terrorismo de que o preço da gasolina ou diesel no Brasil precisa ser caro como num país que não tem petróleo, refinarias, nem empresa pública do ramo.
Outro ponto importante é o anúncio de que a Petrobras vai investir na produção de hidrogênio verde. Como já vimos aqui no OPEB, essa é uma grande aposta mundial de economia de baixo carbono, ainda muito incipiente, na qual o Brasil tem o maior potencial dado o percentual de renováveis na sua matriz energética. É importante que a maior empresa de energia brasileira participe desse desenvolvimento, pois significa que o país não será apenas um mero campo no qual empresas estrangeiras usarão a energia renovável disponível e exportarão o hidrogênio, deixando o país com meras migalhas dos resultados.
Por fim, em consonância com as promessas de campanha do presidente Lula, a Petrobras está voltando a priorizar a produção nacional sua frota. Por enquanto são anunciadas 36 embarcações de apoio, o que pode gerar até 35 mil empregos diretos e indiretos nos estaleiros nacionais. Afinal, a lei brasileira dá preferência a embarcações de bandeira nacional. Essa é uma boa notícia para a indústria naval brasileira, que foi abandonada no país durante os governos Temer e Bolsonaro.
Ao final de outubro será apresentado o novo Plano Estratégico da empresa, formulado pela nova direção. Nele, será possível ver a real magnitude da reorientação da Petrobras, aproveitando todo o potencial que a empresa tem para garantir o abastecimento de derivados de petróleo e gás natural, na geração de emprego e renda no país, e contribuir em paralelo com a transição energética.
Um novo horizonte para a Petrobras
O novo governo Lula e as consequentes mudanças na Petrobras, apesar de parecerem ainda pequenas, representam uma reorientação radical ao que foi visto ao longo dos últimos sete anos. Durante os governos Temer e Bolsonaro a trajetória da Petrobras foi marcada por uma visão obtusa de extração e exportação de petróleo cru e privatizações de setores importantes com único foco na distribuição de lucros para os acionistas, em sua maioria privados e estrangeiros. A nova direção da companhia chega com promessas de recolocar a Petrobras em seu devido lugar, seguindo as tendências mundiais das petroleiras internacionais, e como grande força motriz do desenvolvimento socioeconômico nacional no contexto de transição energética.
Os desafios Petrobras são imensos e a herança deixada pelo domínio da lógica rentista de curto prazo são muito desfavoráveis. No entanto, a Petrobras ainda é uma das maiores empresas do Brasil e uma das petroleiras mais importantes do mundo, com vantagens competitivas e muito bem-posicionada para participar ativamente do cenário energético internacional em benefício da sociedade brasileira.
Propostas de alteração da política da Petrobras |
Impacto sobre inserção internacional |
Conteúdo local para equipamentos e serviços contratados pelo Petrobras |
Gera emprego e renda no Brasil, substitui importações e gera capacidade que eventualmente pode ser utilizada para exportação |
Diminuir pagamento de dividendo (distribuição do lucro entre os acionistas) |
Considerando que quase 2/3 das ações com direito a dividendo são do setor privado, dos quais a maioria de estrangeiro, menos dividendo significa menos drenagem de lucros da Petrobras para fora do país. |
Conter os picos dos preços dos derivados de petróleo |
Acaba diminuindo o lucro financeiro disponível para distribuição e, com isso, tem o mesmo efeito de diminuir o pagamento de dividendo. Reverte a lógica dos governos anteriores que subordinaram a política da Petrobras a interesses financeiros de curto prazo. |
Voltar a investir em expansão do refino |
Diminui dependência de importação de derivados (a preços internacionais em US$). Reverte a lógica típica de subdesenvolvimento de exportar petróleo cru e importar derivados. |
Voltar a investir em petroquímica e fertilizantes |
Diminui a dependência de importação em US$ de matérias primas importantes. O problema não é só financeiro, como ficou claro na pandemia e com a guerra da Ucrânia, mas também segurança de abastecimento. |
Voltar a fazer investimentos no exterior (ex. Bolívia) |
Disputar com os grandes oligopólios internacionais e garantir o abastecimento do mercado interno. |
Investir em fontes renováveis – transformar Petrobras em uma empresa de energia |
Capacidade de competir com petrolíferas internacionais que estão atuando no Brasil na área de energias renováveis (entre as quais Shell, Equinor, BP e Total). Contribuir com a capacidade tecnológica endógena na área de tecnologia. |