Os Investimentos da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos no Setor de Defesa

22 de agosto de 2023


Por Flávio Rocha, Anna Bezerra, Aycha Sleiman, Diego Jatobá, Erika Silva, Flávia Souza, Heloísa Domingues, Julia Lamberti, Lais Surcin, Larissa Gradinar, Lucas Ayarroio, Roberto Silva, Tarcízio Melo e Vinícius Bueno (Imagem: Unsplash)


Os países árabes, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, estão investindo na modernização de relações econômicas, diplomáticas e militares para fortalecer sua posição global. Isso inclui desenvolvimento de armas modernas, como a Saudi Arabian Military Industries (SAMI) e o EDGE Group. Motivações incluem orgulho, economia e segurança. Ambos os países buscam ser produtores globais de armas, estabelecendo parcerias para transferência de tecnologia. No Brasil, há colaboração com o EDGE Group. Isso acontece em meio a disputas geopolíticas globais, desafiando complexos industriais militares ocidentais e gerando concorrência por orçamentos de defesa. A entrada da Arábia Saudita nos BRICS também pode afetar investimentos em tecnologia e defesa.


A busca por uma posição estratégica no cenário internacional contemporâneo, impulsionou os países árabes a investir na modernização de suas relações econômicas, diplomáticas e estratégicas. Especificamente no campo militar, isso significou um investimento nos processos de desenvolvimento de armas modernas. Essa postura mais ativa no campo das indústrias de defesa é especialmente evidente no caso da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, atores fundamentais na região do Golfo Pérsico (uma região especialmente sensível do ponto de vista da segurança internacional). No intuito de fortalecer suas estruturas domésticas relativas ao desenvolvimento de armamentos sofisticados, na Arábia Saudita o estado criou uma coordenação ministerial de defesa, com o papel de adquirir equipamentos e influenciar no crescimento de indústria bélica a fim de garantir que os interesses de Ryad fossem atendidos. Ganha destaque a ‘Saudi Arabian Military Industries (SAMI)’. Os Emirados, por sua vez,  possuem um ministério de defesa estruturado e entrelaçado à atuação do  EDGE Group, um conglomerado focado na indústria militar de alta tecnologia e tendo o governo como seu maior acionista. 


Dentre as motivações que impulsionam esses dois países, destacam-se três:  o orgulho, a economia e a segurança.  O orgulho, embora não seja a característica mais óbvia das decisões políticas, emerge como um elemento irracional intrinsecamente ligado às noções de poder e à construção da identidade nacional. Dessa forma, a produção de armamentos nacionais assume um significado simbólico, mesmo quando não se sustenta como uma escolha estratégica economicamente viável: a capacidade de desenvolver equipamento militar sofisticado serve como uma representação tangível da capacidade de defesa do país. Em termos econômicos, a partir do momento em que o projeto, produção e obtenção de recursos bélicos são elevados a condição de prioridade pelos governos, investir em uma indústria militar é, para além dos ganhos sociais intrínsecos ao processo, uma forma de manter determinado controle sobre condições externas, além de proporcionar que o “dinheiro fique em casa”. No campo da segurança, o domínio do mercado internacional de produtos de defesa por parte das potências ocidentais é fonte de embates políticos, uma vez que certos conflitos que ocorrem no Oriente Médio, como a  guerra em curso no Iêmen, são vistos sob uma ótica negativa pela opinião pública e por certas elites de países como França, Grã-Bretanha e EUA. Manter-se na posição pura e simples de importador de armas é abrir a possibilidade de sofrer restrições na venda de certos armamentos por por parte daqueles que os produzem. 


Obviamente, para os tomadores de decisão nos Emirados e, especialmente, na Arábia Saudita, ficar na posição de simples importador numa região marcada pela instabilidade é garantia líquida e certa de uma posição de fragilidade e dependência no cenário internacional contemporâneo. 


O fato é que tanto a Arábia Saudita como os Emirados Árabes Unidos parecem estar empenhados em se estabelecer como referência dentre os grandes produtores globais de armamentos. Além dos esforços doméstico de reorganização do setor de defesa, há uma intensificação pela busca de parcerias com o objetivo de melhorar a posição dessas monarquias árabes. Os sauditas  tem ampliado a lista de países parceiros, incluindo na última década Indonésia, Índia, Paquistão e Turquia, com a intenção de ampliar a capacidade tecnológica industrial. Também se associou com a Ucrânia e África do Sul, para estabelecer acordos na produção de mísseis. A respeito dos Emirados Árabes Unidos, um ponto de atenção:  para além do fortalecimento de uma indústria própria, há o interesse em investir na melhoria da capacidade de utilização dos armamentos já importados.  Uma estratégia aplicada é a concretização de relações com empresas estadunidenses e europeias, estabelecendo entre ambas as partes benefícios no ganho de conhecimento técnico e cooperação, em troca de mão de obra local. O empoderamento da região árabe passa pelo investimento no desenvolvimento industrial militar como um todo, procurando adquirir desde as bases do conhecimento técnico até as novas tecnologias de ponta. Deve-se levar em conta que o envolvimento contemporâneo em conflitos militares também exerce o seu quinhão de influência, especialmente no caso do envolvimento de Ryad na Guerra do Iêmen. 


Em 2016, a Arábia Saudita anunciou um ambicioso projeto de desenvolvimento, remodelamento e diversificação de setores chave do reino, que busca, além de se consolidar como potência regional, alcançar relevância financeira e industrial global. Chamam a atenção os planos de diversificação da estrutura econômica do país, totalmente dependente da produção petrolífera, de abertura cultural e turística, além da ênfase no desenvolvimento sustentável. Dentro desse plano ambicioso, insere-se a busca por uma transformação do setor  estratégico-militar a partir do projeto de modernização e desenvolvimento da indústria de defesa nacional


Entre 2015 e 2019, a Arábia Saudita foi a maior importadora de armamento do mundo. Além das armas sofisticadas que o Reino tem importado, especialmente dos Estados Unidos, politicamente existe um esforço no sentido de garantir o domínio de tecnologia bélica e capacidade de produção soberanas, num cenário regional marcado pela instabilidade. Algumas das prioridades nos planos de transformação sauditas são a construção de uma marinha nacional moderna e o desenvolvimento da capacidade de produção de munições e armas, tendo sido estabelecida a meta de realizar, até 2030, 50% dos gastos militares em território nacional. Além disso, há uma ampliação de  parcerias estratégicas que permitam a transferência de tecnologia, diminuindo assim a dependência dos sauditas em relação a fornecedores externos. 


Alguns dos desafios enfrentados pelo setor militar saudita é o incômodo de grandes países exportadores de armamento, que não querem perder o fluxo constante e lucrativo de exportações em direção a Ryad, além da oposição de certos grupos industriais em cooperar financeira e tecnologicamente com o reino dos Saud, notório por seu autoritarismo e violações dos direitos humanos (ainda que as vendas maciças tem feito com que os lobbies do complexo industrial militar, especialmente o estadunidense, simplesmente ignorassem as violações durante o governo de Donald Trump).   Ainda assim, o movimento muito interessa a Washington, que pode encontrar no crescimento saudita um aliado regional fortalecido, o que permitiria aos norte-americanos concentrar esforços em outras regiões geopoliticamente mais relevantes a seus interesses.


O rápido crescimento da Saudi Arabian Military Industries (SAMI)


Entre as indústrias militares no Golfo em processo acelerado de evolução, destaca-se o crescimento rápido de uma empresa estatal da Arabia Saudita, a Saudi Arabian Military Industries (SAMI), que até recentemente mal era percebida pelos analistas internacionais do setor de defesa. A SAMI foi criada em 2017 com objetivo de reduzir a dependência do país na importação de produtos de defesa. Mas em apenas seis anos tornou-se o principal Player da indústria bélica saudita e atingiu em 2023 uma carteira de mais de US$10 bilhões em contratos. 


A empresa tem como objetivo estar entre as 25 maiores empresas de defesa do mundo, e para alcançar essa meta tem como estratégia ativar aproximadamente dezoito joint ventures com líderes globais da indústria de defesa para impulsionar a transferência de tecnologia. Em novembro de 2022, doze dessas parcerias já estavam oficialmente ativas, contando com grupos como Navantia, L3 Harris, Thales, Figeac Aero e John Cockerill. E o foco de 2023 é ampliar a parceria com a Airbus, Boeing, MBDA, Lockheed Martin e possivelmente a Hanwha da Coreia do Sul.


No cenário doméstico, o rápido crescimento da SAMI foi impulsionado pela incorporação de empresas locais de defesa já estabelecidas. Além de investir na construção das suas próprias fábricas e instalações, como por exemplo, as localizadas na cidade de Al Kharj e que servirão para a construção e modernização de veículos militares, e cuja previsão para o início das operações é 2026. A empresa também está construindo um complexo industrial de munições e um centro aeroespacial em Malham previsto para entrar em operação já em 2024.  Ao mesmo tempo, está erguendo outra fábrica para a produção de compósitos de material aeronáutico e assumirá as operações da Tatra, uma fabricante tcheca, para a construção de caminhões militares. 


Não se pode perder de vista o fato de que os dois países do Oriente Médio entraram no radar da disputa entre as grandes potências, dessa vez envolvendo tecnologias de defesa e segurança e começando a alterar a percepção de que apenas o petróleo deve ser considerado na capacidade de influência internacional de ambos.


Após estabelecer relações diplomáticas com Israel, a cooperação em segurança tem resultados em aproximação dos Emirados com os EUA, intermediada pelo governo israelense. Enquanto o diretor do Mossad, o serviço de inteligência de Israel, segundo o site Axios, visitou secretamente os Estados Unidos para discutir a “iniciativa saudita”de Biden, William Burns, atual diretor da CIA, fez uma viagem surpresa para Arábia Saudita e voltou afirmando a aproximação entre os dois países no setor de inteligência, segurança e tecnologia. A empresa Edge tem participado de conferências de tecnologias nos países do Oriente Médio e tem demonstrado interesse em investir em tecnologias de segurança, especialmente envolvendo inteligência artificial. Ou seja, há um movimento de ampliação da atividade da corporação dos Emirados em direção aos o setor de defesa ao mesmo tempo em que os sauditas fazem o mesmo. 


Apesar dos avanços, a indústria de defesa saudita enfrenta desafios, como a concorrência da EDGE, o conglomerado de defesa estatal dos Emirados Árabes Unidos, e a escassez de profissionais qualificados para seus projetos. Outros desafios incluem os  investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento, bem como a ausência das instalações necessárias para aumentar a produção, o que deixa mais caro a manufatura local em relação aos fornecedores estrangeiros.


O Brasil e os investimentos árabes no setor de Defesa


Nesse movimento de ampliar os investimentos e as parcerias no cenário internacional, o grupo EDGE assinou um acordo estratégico com a desenvolvedora de turbinas brasileira Turbomachine na semana do dia 12 de agosto deste ano. A colaboração visa o desenvolvimento conjunto de motores, como turbofans e propulsores, para os UAVs e mísseis que são fabricados pela EDGE. A assinatura ocorreu na sede da Turbomachine, em São José dos Campos – SP, durante a visita de uma delegação da empresa emiradense ao Brasil. Essas visitas têm como objetivo fortalecer laços, trocar conhecimentos e possibilitar a coevolução de sistemas de defesa avançados.


Vale lembrar que não é a primeira vez que o Edge Group faz parcerias do tipo no Brasil. Na LAAD 2023, o grupo fechou um acordo de parceria estratégica e cooperação para o desenvolvimento de mísseis antinavio de longo alcance de última geração. O acordo foi finalizado em Brasília na presença Reem Ebrahim Al Hashimy, Ministra da Cooperação Internacional dos Emirados Árabes Unidos, Saleh Ahmad Alsuwaidi, Embaixador dos EAU no Brasil, Mansour AlMulla, CEO e diretor geral da EDGE, e representantes da Marinha do Brasil liderados pelo Almirante José Augusto Vieira da Cunha de Menezes.


Outro ponto de destaque acerca do Edge Group é seu Managing Director & CEO no Brasil e América Latina, Marcos Degaut, nada menos que o ex-secretário de produtos de Defesa do governo de Jair Bolsonaro. Degault era uma personalidade relevante do último governo, fortemente alinhado às pautas do bolsonarismo e, evidentemente, com contatos na cúpula das Forças Armadas brasileiras. Esses contatos podem facilitar o estabelecimento de parcerias desse grupo com empresas nacionais envolvidas em programas estratégicos de defesa, especialmente com o orçamento que essa área recebeu no PAC, e que totaliza 52,8 bilhões de reais destinados ao setor, ficando a frente do montante destinado à educação, 45 bilhões.  O ex-secretário está especialmente bem posicionado para aumentar a participação do grupo Edge nos esforços brasileiros de inovação no setor de defesa, tendo trânsito entre os comandos das Forças Armadas brasileiras.


Também circulou a notícia de que o grupo Edge estaria em negociações para adquirir a empresa brasileira Avibrás. A Avibrás fabrica o sistema de lançamento de foguetes Astros, considerado um dos mais avançados do mundo em seu nicho, e desenvolve um míssil tático de cruzeiro. Ocorre que a fabricante nacional está em recuperação judicial, com 395 milhões de reais em dívidas e tendo demitido 420 dos seus 1400 funcionários. Caso o governo não faça uma intervenção estratégica no sentido de ajudar a Avibrás e, ao mesmo tempo, manter o controle dela em mãos brasileiras, é possível que suas cobiçadas tecnologias passem para o controle do país do Golfo Pérsico, que aumentaria seu capital geopolítico.


Em 2021, o então vice-presidente, Hamilton Mourão, afirmou em entrevistas que o relacionamento entre Brasil e a Arábia Saudita estaria em expansão em diversas áreas, tais como investimentos na Amazônia, energias alternativas, agrotecnologia e também na área de defesa. Segundo Mourão, ambos os países também possuiriam forte potencial comercial no que diz respeito a equipamentos militares. O objetivo traçado era dobrar os números do ano anterior, atingindo o registro equivalente a US$5,6 bilhões na balança comercial Brasil-Arábia Saudita.


Dentro dos objetivos comerciais brasileiros, estaria a venda dos sistemas de lançamento múltiplos de foguetes Astros (a Arábia Saudita já comprou esse equipamento no passado) e a venda de jatos da Embraer. Em 2023, podemos observar uma continuidade de um elo que já havia sido estabelecido. Segundo o atual vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, durante o Fórum de Investimentos Brasil-Arábia Saudita, a aprovação da Reforma Tributária e o Arcabouço Fiscal constroem no Brasil o cenário favorável para estimular a indústria brasileira e desonerar completamente investimentos do Brasil e exportação e para garantir que a relação entre a dívida e o PIB se estabilizará. Também na ocasiãofoi firmada a parceria entre a Taurus (maior fabricante de armas leves do Brasil) e a Scopa Defense Trading, outra empresa saudita do setor de defesa, para estudar a criação de uma fábrica de armas na Arábia Saudita em joint venture, como também, para abrir a oportunidade de a empresa brasileira expandir suas vendas nas regiões do Conselho de Cooperação do Golfo, que também conta com a participação do Bahrein, Catar, Emirados Árabes Unidos, Kuwait e Omã. O plano de negócios empresarial e as condições de participação devem ser definidos nos próximos 12 meses. 


O que se pode concluir, pelo menos por hora, é que tanto os Emirados Árabes Unidos como a Arábia Saudita tem realizado esforços consistentes no sentido de se tornarem hubs no setor de tecnologia militar, o que espelha um trabalho que também estão realizando em setores civis. Tanto Ryad como Abu Dhabi tem feito investimentos e parcerias não só com países do primeiro mundo, mas tem aumentado a cooperação com o Sul Global. Nesse processo, a busca por acordos com o Brasil entra na lógica de diminuir a dependência das potências ocidentais mas, também, de aumentar a participação de sauditas e emiradenses no mercado mundial de armamentos, e especialmente dos armamentos mais sofisticados. 


Essa movimentação é particularmente relevante no contexto geopolítico contemporâneo, marcado pela disputa entre EUA e China e pela guerra por procuração entre Rússia e OTAN que ocorre na Ucrânia. Se houver um acirramento dessas disputas, crescerão os complexos industriais militares pelo mundo, o que implicará numa concorrência global por orçamentos bilionários. Finalmente, a Arábia Saudita pediu formalmente para ingressar nos BRICS, o que pode levar a um aumento dos investimentos desse país em Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, o que abriria a possibilidade da entrada de capitais nas indústrias militares desse país, que poderiam contribuir para o fortalecimento não só dos setores ligados à defesa, mas de toda uma cadeia de produção tecnológica que beneficiaria indústrias de uso dual, como a naval ou a de produção de chips. Deve-se observar com atenção esses movimentos já no futuro próximo, e quais serão as respostas dos países ocidentais e de seus complexos industriais militares.

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