Relações Brasil-Marrocos e Norte da África

10 de agosto de 2021

Por Mohammed Nadir, Magaly Morais, Enrique Lima, Kethelyn Santos, Pedro Lagosta, Flávio Thales (Foto: Pixabay)

As relações entre o Brasil e o Norte da África estão se desenvolvendo à medida em que se aprofundam as ligações dos diversos setores produtivos nos dois lados do Atlântico.

Brasil e a região de Oriente Médio e Norte da África

Historicamente a principal interação inicial entre Brasil e países em África reverberava na sombria relação com os países lusófonos e o tráfico de escravos. A herança colonial negativa perde força ao configurar-se na luta antirracista o empenho para novas oportunidades, atraindo mais investimentos e relações comerciais bem com aprimoramento da governança a partir da descolonização no continente. Com amplo espaço para minimizar a falta de equidade social pós-colonial, a substituição do trabalho escravo por trabalho imigrante no Brasil exigiu grande adaptação em todas esferas, pois nem toda a clientela de imigrantes assalariados se adaptou ao trabalho nas lavouras.  

Já no que diz respeito às relações Brasil com os países de Norte África e Oriente médio em geral, elas datam também desde o achamento do Brasil. 

Os estudos sobre a área -que ocorreram tardiamente- procuraram compreender a integração cultural, econômica e política dessa população em determinadas regiões, bem como avaliar a mobilidade social ocorrida. Nas décadas de 1850 a 1930 os estudos científicos se preocupavam com a imigração laboral e de interiorização, eixos que não incidiam sobre a população árabe. Menciona-se a obra de Knowlto(1) ,  um estudo inicial sobre a imigração árabe no Brasil que enfatizou a temática da mobilidade social dos sírio-libaneses e ainda, um outro estudo realizado pelo IDESP adotava a perspectiva das etnias pouco estudadas, dos sírios, libaneses, armênios, judeus e outros,  interessado nas experiências de vida, explorando as trajetórias  e atividades na sociedade local (2)

 A causa inicial desse fluxo migratório decorria da pressão religiosa imposta sobre os cristãos evidenciando dum lado o despotismo dos dominantes turcos otomanos e por outro lado as estratégias europeias de dividir para reinar. Na nova pátria, a proliferação do trabalho de mascates que atraia os mais jovens dos vilarejos em torno de um fornecedor patrício, veterano que fomentava a rede inicial de contatos para oferta de produtos, aprendizado do idioma e conhecimento do território.

Imigração disseminada

Os imigrantes de origem árabe se espalharam por todo o território brasileiro nas atividades do comércio. Sírios, Libaneses, Armênios, em regiões de São Paulo, Espírito Santo, Piauí, Goiás se estabeleceram através do comércio ambulante-mascate, que constituiu a principal atividade econômica em detrimento aos trabalhos na fábrica ou isolamento rural nas fazendas.  

Em São Paulo, os imigrantes italianos foram sendo substituídos pelos sírios e libaneses que se agregaram na rua 25 de março e imediações no comércio de miudezas, terços, jóias, artigos de armarinhos, lençóis de rendas e atrativos para esposas de fazendeiros e moradores de vilarejos isolados. Posteriormente, roupas e costuras envolviam o suporte das mulheres, crianças e idosos na produção e reposição de mercadorias em casa. Tolerância e flexibilidade comerciais para compra e venda de mercadorias tanto por colonos quanto por fazendeiros possibilitaram o acesso às “novidades” por tempo prolongado nas regiões do nordeste e sertão do Brasil. 

A independência financeira e autonomia do trabalhador árabe que se distanciava das reivindicações trabalhistas e políticas optando antes pela manutenção de tradições entre gerações, revelavam para os primeiros estudiosos “uma reação contrária à integração social”. A cultura árabe estabelece influências multifacetadas na cultura brasileira a saber: na linguística, na gastronomia, na área médico-hospitalar, na agronomia, nas artes, nos esportes através dos clubes esportivos, mantendo-se fortemente integradas nas associações comerciais formadas ao final do século XX.

No século XXI o desenvolvimento econômico no Brasil e a região MENA (sigla inglesa) Oriente Médio e Norte de África evidenciam oportunidades potenciais de aproximação diplomática e comercial, entendendo-se no Eixo-Sul-Sul a ponte de cooperação que aponta o Brasil como elo para os dois lados do Atlântico Sul. A cooperação no Sul Global, equilíbrio internacional e multilateralismo predominaram na política externa do governo brasileiro sob a presidência de Lula, traduzindo-se em influência global e na presença diplomática na região, com a diferencial preocupação com os problemas sociais, contrastando com a estratégia de outras nações como Estados Unidos e a Europa. Estima-se o volume de negociações em África durante o governo Lula inicialmente de US$ 6bilhões em 2003 para US$25.6 bilhões em 2012, com grande concentração de exportação para os países Egito, África do Sul, Angola, Nigéria, Algeria, Marrocos, Líbia, Ghana, Tunísia e Senegal. 

Marrocos/Norte da África e o Brasil 

Falar das relações do Brasil com Marrocos nos conduz a navegar junto com as primeiras caravelas ibéricas que chegaram ao novo mundo, levando consigo não apenas o saber da cultura árabe andaluz, mas também muitos de cristãos-novos que nunca deixaram de lado seus hábitos e costumes. Um segundo momento dessa relação secular prende-se com a evacuação pelos portugueses em 1769, da fortaleza de Mazagão no Marrocos que estava sob ocupação portuguesa desde o século XVI e sua transferência para o Amapá nas Amazonas.  

Tal contexto era  marcado pela redefinição geopolítica do império português  que coincidia com a assinatura do tratado de Madri (1750), a expulsão dos Jesuítas em 1759 e sobretudo o desejo existencial de defender a joia da coroa que era o Brasil contra as investidas das outras potências coloniais europeias tais como a França que  tenha  alojado 16 mil colonos franceses em 1763 na região de Kourou (Guiana francesa) demonstrando interesse pelo espaço amazônico e ameaça à dominação portuguesa na região. Compreende-se então a decisão de Lisboa de dar início ao projeto de colonização no Norte amazônico por meio da instalação de 1642 pessoas (388 famílias) vindos do Marrocos, com objetivo de consolidar o domínio da coroa portuguesa num espaço que considerava extremamente vital.

Hoje o legado dessa relação permanece vivo nas festas que anualmente organizam-se no Mazagão Velho, entre os 24 e 25 de julho em que a vila se embeleza para celebrar a festa de São Tiago, para um lado reencenar um passado de lutas entre muçulmanos e cristãos e por outro lado busca construir as pontes de uma aculturação transatlântica que hoje apela a necessidade de maior diálogo e cooperação.

O fato de a festa de São Tiago ser a única no seu género na América Latina na medida que retraça essa relação triangular que teceu o destino histórico de Marrocos, Portugal e Brasil, dando lugar a um hibridismo cultural sui-generis (marroquino, africano, português e índio brasileiro) traz hoje milhares de turistas não só de Amapá, mas do Brasil inteiro. Foi essa importância que levou o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) a realizar escavações em torno das ruínas da igreja colonial de Mazagão Velho permitindo descobrir em dezembro de 2005, 61 sepulturas datadas do século XVIII que foram acomodadas num mausoléu inaugurado para efeito no dia 23 de janeiro de 2006 em presença do governador do Amapá e de representantes do Marrocos e de Portugal. “Mazagão Velho, passado que fortalece o presente e ajuda a construir o futuro”(3) foi assim que o jornal a Gazeta do município registrou o encontro em 2006. O conjunto dos bens materiais (como o traçado urbanístico) e imateriais (notadamente a festa de São Tiago, que reúne rituais religiosos, cavalhadas e teatro a céu aberto) estão em via de tombamento pelo IPHAN.

Fato épico

O terceiro momento das relações de Marrocos com Brasil se deve a um fato épico dos marroquinos de confissão judaica que no século XIX e início de XX migraram para o Brasil desafiando todas as dificuldades da travessia em veleiros, a dureza do clima, a febre amarela, a vida dolorosa que os esperava além do oceano e da qual eles ouviam notícias pouco animadoras. Apesar de tudo isso, nada os impediu de se instalar no interior amazônico, sobretudo na cidade de Manaus, se dedicando ao comércio de borracha e também operando nas pequenas embarcações para navegação fluvial. A odisséia dos judeus marroquinos durava entre dez e trinta anos na qual o emigrante acumulava um capital que lhe permite restabelecer novamente no Marrocos com a sensação de missão cumprida nas terras brasileiras.  

A presença no Brasil contribuiu muito para a elevação intelectual dos judeus marroquinos que ao voltarem a Marrocos “brasileirados” “americanizados” procuravam mostrar a seus compatriotas a utilidade de estudos sérios e descoberta de novos horizontes. Nomes como David S. Amiel, Serfaty, Gabbai, Levy, Marques, Attias, Benayon, Benchimon e Cohen, bem conhecidos em cidades de Belém e Manaus, são alguns das famílias que testemunham esse lado épico dos marroquinos no Brasil e que de certa forma mantiveram o legado ininterrupto das relações do Brasil com Marrocos.

Questões econômicas 

A relação Brasil-Marrocos no âmbito econômico ainda pode ser muito explorada, expressando um volume não tão relevante de bens comercializados entre si. Desde 2000, o volume de trocas comerciais entre os países aumenta gradativamente, mas ainda são concentradas em poucos produtos. Entre 2000 e 2014, houve um aumento mais expressivo no comércio bilateral, com médias de crescimento anual nas exportações brasileiras atingindo 11%, e nas exportações marroquinas 23,8%.

No ano 2000, o volume de bens exportados por Marrocos era de US$ 78,2 milhões, enquanto as exportações do Brasil estavam em torno de US$ 146 milhões. Com o estreitamento das relações, Marrocos atingiu US$513 milhões em exportações em 2007, enquanto o Brasil alcançou US$ 472 milhões. Esse primeiro período de relações bilaterais Brasil-Marrocos já evidencia uma dinâmica de maior relevância do Brasil para a economia marroquina. Em 2014, as exportações do Reino africano aumentaram para US$1,45 bilhões, enquanto o Brasil se manteve em um patamar relativamente próximo de 2007, com apenas US$ 588 milhões em exportações para o parceiro comercial africano. É preciso levar em consideração que a economia brasileira está cada vez mais focada no atendimento do mercado chinês, seu principal parceiro comercial na atualidade US$63,5 bilhões em exportações no ano de 2019). A partir de 2014, as exportações brasileiras para Marrocos se mantiveram estáveis e sólidas, com médias de crescimento anuais menores (14,3% a.a.), mas ainda assim aumentando gradativamente. Enquanto Marrocos entrou em um período de volatilidade, crescendo muito em 2008 e 2010, mas com uma queda acentuada em 2009. O que manteve a média de suas taxas de crescimento em exportações (11,2% a.a.) menor que a brasileira.

Comércio e agroindústria

Apesar do crescimento relatado no período entre 2000 e 2014, as exportações entre os países mantiveram-se concentradas em poucos produtos, focadas na agroindústria. Em 2014, cerca de 48,8% das exportações marroquinas eram de fertilizantes, e outros 38,8% eram de minerais, combustíveis e óleos minerais (ou produtos destilados desses materiais). No lado brasileiro, 36,6% das exportações foram de açúcares ou derivados do açúcar, enquanto 22,3% foram de cereais. O que mostra um comércio bilateral de exportações marroquinas para uso na agricultura, enquanto o Brasil exporta produtos agrícolas semimanufaturados e manufaturados para o Marrocos.

Em grande parte, as relações comerciais entre os países foram de grande relevância para o Marrocos, registrando maiores volumes de exportações (US $937 milhões em 2019, enquanto o Brasil registrou US$483 milhões). A dinâmica manteve-se semelhante ao longo de todos esses anos, com grande foco no setor da agricultura. Mas é possível dizer que o país africano está tirando melhor proveito do comércio bilateral. 

Em 2020, o Brasil tornou-se o terceiro maior cliente do Reino marroquino, atingindo cerca de US$1,2 bilhão em exportações. A Câmara de Comércio Árabe Brasileira reforça que mais campos podem ser explorados dentro das trocas bilaterais, ainda que com produtos majoritariamente agrícolas, mas visando diminuir o déficit na balança comercial brasileira com o Marrocos (US milhões em 2020).

Atualmente, as relações econômicas brasileiras estão aumentando de modo geral com os países árabes, abrindo mais possibilidades para o aprofundamento da cooperação bilateral com Marrocos. A exportação brasileira de maquinários e eletrodomésticos (que representou 3,23% do volume de exportações em 2019) pode ser um caminho para aumentar as trocas de bens de consumo duráveis entre os países. Tornando assim o comércio Brasil-Marrocos mais robusto em setores não ligados à agricultura ou agropecuária. Para além disso, recentes conversas entre representantes desses países reforçaram o compromisso de ambas as nações para a cooperação econômica e consultas estratégicas, estabelecendo  relações multidimensionais. 

Perspectivas futuras 

As relações entre Brasil e Marrocos estão se desenvolvendo na medida em que se aprofundam as ligações dos diversos setores dos dois países. Marrocos tem demonstrado uma grande vontade de expandir sua produção e explorar novas possibilidades, as quais podem dialogar com as capacidades técnicas do Brasil. Os dois países têm mostrado grande interesse em aprofundar sua cooperação, visto o acordo firmado em 2018 em torno do setor aéreo entre Ernesto Araújo e Nasser Bourita. Neste ano, o chanceler brasileiro Carlos França realizou uma reunião com Nasser Bourita, reafirmando a cooperação e o aprofundamento do diálogo, principalmente em relação ao setor econômico-comercial, segurança, cooperação bilateral e questões regionais. A Câmara de Comércio Árabe Brasileira realizou em setembro do ano passado um evento virtual para discutir as possibilidades de ampliação da cooperação entre Brasil e Marrocos no âmbito econômico, apontando diversos setores onde o aprofundamento da relação pode beneficiar ambos os países. 

O adido agrícola da embaixada do Brasil no Marrocos, Nilson Guimarães, comentou sobre a possibilidade de expansão das exportações brasileiras a Marrocos. A exportação de café e frutas tropicais pode ser expandida, além de haver espaço para a comercialização de material genético animal e produtos típicos do Brasil, como a erva-mate e o açaí. Guimarães aponta que o comércio entre os dois países aumentou durante o ano de 2020, dando margem para que haja uma expansão da relação comercial. Visto que a produção agrícola de Marrocos apresentou um aumento durante o ano de 2021, dadas as condições climáticas favoráveis, faz-se mais vantajoso que o Brasil explore a exportação de novos produtos que complementem a produção marroquina. Esse aumento da produção de Marrocos no ano de 2021 também pode representar um aumento da exportação em direção ao Brasil, visto que o país africano produz itens como fertilizantes e sardinhas, além da expansão para outras mercadorias como frutas vermelhas e azeite de oliva.

O Banco Central de Marrocos apresentou uma estimativa de um crescimento de 5,3% no ano de 2021. Isso se dá principalmente devido ao aumento da produção agrícola neste ano, já mencionada anteriormente, porém soma-se a melhoria de outras atividades não agrícolas. Um dos grandes prejuízos para a economia marroquina foi a despencada do turismo, devido à pandemia do Covid-19, setor que apresentou queda de 81,5% nos primeiros meses de 2020. O turismo de Marrocos tem sido retomado lentamente, na medida em que a vacinação começa a progredir. No dia 7 de julho o país africano abriu suas fronteiras para o Brasil, passando a admitir turistas brasileiros que apresentarem a vacinação completa, aceitando todas as vacinas aplicadas no Brasil.

Outro setor que tem aumentado em relação à cooperação entre Brasil e Marrocos é o tecnológico. O setor digital tem crescido dentro dos países norte-africanos, Marrocos e Tunísia tendo sido apontados pela OCDE como destaque na melhoria do uso de ferramentas digitais. Essa expansão dos meios digitais provou ser útil para a melhoria das empresas dos países, principalmente em relação às startups, as quais conseguem infraestrutura e apoio para expandir seu comércio virtual. A utilização de meios digitais em Marrocos pode apresentar novas oportunidades de cooperação com o Brasil, criando ligação virtuais entre as duas economias. Além disso, Marrocos também tem expandido sua produção energética, visto o investimento de 5,8 bilhões em energias renováveis. 

 Esse investimento está inserido dentro de sua meta de produção de mais de 52% de sua eletricidade a partir de recursos renováveis. No final de julho foi realizado um convênio entre o Inesc P&D Brasil e o Green Energy Park (GEP), do Marrocos, para a transferência de tecnologia para a produção de baterias para carros elétricos. A rede de pesquisadores busca aproximar as ambições energéticas dos dois países, providenciando tecnologias e conhecimento para a construção de um ambiente de cooperação.

NOTAS

1 – KNOWLTON, Clark. Sírios e Libaneses: mobilidade espacial e temporal. (NUNES, 1996, p. 158) citada como o primeiro trabalho sobre a imigração Árabe no Brasil

2 – NUNES, Heliane Prudente. Historiografia da Imigração Árabe nos Estados Unidos e no Brasil: Uma perspectiva comparativa. Textos de História v. 4, nr 1. (1996):149-180. Disponível em: https://www.periodicos.unb.br/index.php/textos/article/view/27736/23841 acessado em 01.08.2021.

3 – http://www.brasilarqueologico.com.br/materias/AGazeta%20-%2020060124%20-%20Mazagao%20reconstroi%20sua%20historia.pdf

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *