Marrocos, Sahara Ocidental e a crise diplomática entre Espanha e Argélia

26 de Julho de 2022 

Por Mohammed Nadir, Flávio Thales, Gabriel de Castro Soares e Heuler Costa (Foto: Unsplash)

 

Os recentes atritos entre Argélia e Espanha e a questão que envolve o Saara ganham importância à medida que o continente aparece como uma alternativa aos russos devido à proximidade com a Europa

 

Em junho, a Argélia suspendeu o “tratado de amizade, boa vizinhança e cooperação” com a Espanha assinado em 2002, após a mudança de posição de Madrid no caso do Saara Ocidental. Saara Ocidental é um território, considerado não autônomo pela ONU, de 266.000 km², situado entre o Oceano Atlântico a oeste, Marrocos ao norte, Argélia a nordeste e Mauritânia a leste e sul, e é disputado por estes três países, com Marrocos ocupando 80% do território. A população desse território, por meio da Frente Polisário, que é apoiada pela Argélia, vem reivindicando sua autonomia do Marrocos. A queda do tratado hispano-argelino aconteceu quando o país europeu, que se mantinha neutro e visto como um grande articulador para resolução do conflito, decidiu apoiar Marrocos.

 “O tratado hispano-argelino procurou fortalecer o diálogo político entre os dois países, em todos os níveis, e o desenvolvimento da cooperação nos campos econômico, financeiro, educacional e de defesa”. Com o fim do tratado, a cooperação entre os dois países pode fracassar, embora o fornecimento de gás para Espanha continue. Vale ressaltar que a decadência entre Madri e Argel aconteceu em um momento em que o fornecimento de gás da Argélia para o país europeu se tornou cada vez mais importante devido à crise Ucrânia-Rússia.

Entretanto, apesar da Espanha declarar a continuação da cooperação com Argélia, mostrando a “boa vontade de boa vizinhança, a presidência argelina qualifica esses argumentos de falaciosos”, acusando Madrid de promover uma situação colonial: “As autoridades argelinas em nenhum momento foram informadas deste acordo hediondo assinado com a potência ocupante marroquina às custas do povo saharaui. Acrescentou ainda que “é uma violação do direito internacional, apoia a ocupação, incentiva a agressão e a política do fato consumado”.

A questão do Sahara Ocidental: vestígios de guerra fria

A questão do Sahara ocidental continua sendo um dos conflitos mais antigos da história contemporânea devido à sobreposição de interesses das partes envolvidas.Quase quatro décadas após a sua eclosão, o conflito em torno do Sahara ainda não encontrou uma solução definitiva e consensual.

Para entender o dossier do Sahara Ocidental, convém recuar ao século XIX, quando a Espanha, em 1884, colocou este território sob seu protetorado.  A conquista foi confirmada pela Conferência de Berlim de 1884-1885. A partir de então, a Espanha colonialista, que estava sofrendo a humilhação nas Américas, passou a encarar o expansionismo no sul de Marrocos como parte da reconstrução do orgulho ferido e o novo e emergente nacionalismo espanhol.  Assim começou a estabelecer entrepostos comerciais e guarnições militares naquilo que viria a ser chamado o Sahara espanhol e que incluía  os territórios de Rio de Oro e Seguia el-Hamra.

Entre outubro de 1957 e abril de 1958, Marrocos, que tinha conseguido sua independência da França na parte norte em 1956, iniciou a guerra de libertação dos territórios do Ifni, Tarfaya e Sahara Ocidental da ocupação espanhola, apoiando o Exército de Libertação Nacional do sul de Marrocos. Apesar dos êxitos iniciais, a operação conjunta franco-espanhola -conhecida em francês como Operação “Écouvillon”- conseguiu  derrotar o Exército de Libertação Nacional marroquino no Sahara Ocidental.

Em 1963, Marrocos registrou este território na lista de territórios não autónomos da ONU. Este então tentou, em ordem dispersa, convencer a Espanha a descolonizar este território, bem como Cap Juby e o enclave de Ifni, e negociar isso com Marrocos. A Resolução 2.072, de 17 de dezembro de 1965, que preconizava a descolonização, foi assim aprovada apesar da oposição de Espanha e Portugal e da abstenção de França, Reino Unido, Estados Unidos e África do Sul. A essa falta de consenso por parte das grandes potências soma-se ao conflito aberto entre Argélia e Marrocos, que culmina na Guerra das Areias de 1963, dificultando os objetivos do Estado do Marrocos.

Perante a intransigência colonialista de Espanha, Marrocos decidiu levar o assunto ao Tribunal Internacional de Justiça em 1975.  O parecer consultivo do Tribunal Internacional de Justiça confirmou a existência de vínculos históricos entre as populações do Sahara Ocidental e de Marrocos, bem como de toda a Mauritânia. Pouco depois o rei Hassan II organizou a marcha verde (6 de novembro de 1975) para assinalar a vontade da soberania marroquina sobre este território. Isso leva a Espanha a assinar os acordos de Madrid com Marrocos e Mauritânia em 14 de novembro de 1975, para formalizar a entrega do território do Sahara. A retirada das tropas espanholas, decidida pouco antes da morte de Franco, ocorreu entre 1975 e 1976.

Enquanto parecia esse período colonial chegando ao fim, a criação em 27 de fevereiro de 1976, da “República Árabe Sahraui Democrática (RASD)” proclamada pela Frente Polisário sob instigação da Argélia recém-independente e com um forte desejo de disputar a hegemonia no Magreb com o Marrocos, fez abrir uma guerra entre as tropas marroquinas e a guerrilha da Polisário doravante tutelada e treinada por Argélia para enfraquecer o adversário marroquino. A batalha de Amgala em 1976 entre forças marroquinas e argelinas no território do Saara Ocidental mostrou o apoio ativo da Argélia ao Polisário.

Após 15 anos de guerra de emboscadas desesperadas do Polisário contra o exército marroquino, um cessar-fogo foi assinado em 1991 pela mediação das Nações Unidas abrindo caminho à busca de uma solução política viável e aceite pelas partes beligerantes.

Para o reino do Marrocos, o Sahara é parte integrante do seu território comprovado por argumentos jurídicos e históricos notadamente al-Baya que é uma espécie de laços de caráter jurídico que sempre uniram os sahraouis e o Estado marroquino.  Mais do que isso, o Sahara constitui para Marrocos um fator de coesão nacional inquebrável.

Todavia, se o Polisário continua a reclamar ser representante dos Sahraouis,  a realidade  segundo Marrocos, é que a Frente Polisário não passa de uma ferramenta da junta militar argelina que procura usar a Polisário para enfraquecer o seu rival regional, desviar questões relativas às suas fronteiras e sobretudo se oferecer acesso ao Oceano Atlântico através de um Estado sahraoui ao seu serviço.  

Evidencia-se nesse sentido que a questão do Sahara Ocidental não passa de uma espécie proxy war no qual Argélia disputa a liderança regional com um Marrocos cada vez  presente no continente africano desde seu retorno a União Africana mas sobretudo desde o reconhecimento dos Estados Unidos da América em 10 de dezembro de 2020 a soberania de Marrocos no Sahara Ocidental e ultimamente a posição espanhola que de facto reconheceu a soberania marroquina sobre a antiga colônia espanhola, considerando a proposta marroquina de autonomia de 2007  para o Sahara Ocidental como única solução política realista, credível ao conflito.  

Em termos práticos, a recente posição oficial espanhola avançada em março de 2022 enterra definitivamente os sonhos separatistas da Frente Polisário. Desse modo a reacção argelina para com Espanha revela a nu o envolvimento do regime argelino num dos conflitos mais crônicos do mundo.

60 anos de independência da Argélia: A sombra da memória e o eterno desentendimento com a França  

 

A colonização da Argélia sob mandato francês durou 130 anos e só teve seu fim no dia 5 de julho de 1962, após uma violenta guerra e a  posterior assinatura dos acordos de Évian. As cicatrizes de seu passado colonial ainda são fonte de memória e atritos diplomáticos entre Argel e Paris.  O regime francês incorreu durante o período de ocupação a todas as formas de dominação em que teve acesso para se impor sobre o território argelino, atuando desde sua absorção institucional, pela propaganda cultural, manipulação de seus grupos étnicos e exploração econômica.

 

Em 1848 a Argélia foi incorporada como “departamento francês”, ou seja, não recebia o status de colônia ou território dominado, mas sim, passou a ser reconhecida como parte do próprio território francês, tendo a mesmo posição das demais regiões administrativas do país (direito à participação eleitoral e representação parlamentar). Também rica em jazidas de petróleo e gás, o país representava fonte de segurança energética e ponto estratégico militar para a projeção francesa na região.

 

Como parte do projeto de assimilação total do território, os franceses buscaram promover por diferentes vias a galicização das instituições e população argelinas. Como parte do plano houve o estímulo a imigração de nacionais franceses, o sistema de educação pública foi expandido, obedecendo cartilhas que promoviam a propagação da língua e símbolos franceses, já para a população adulta -tanto europeus cristãos quanto berberes muçulmanos-, foi assimilada ao exército nacional francês. A relação integrada com a colônia ofereceu grandes oportunidades de lucro à França, dada às custas dos povos nativos, que sofriam com distorções de suas fronteiras étnicas e religiosas, a apropriação de terras, insegurança alimentar e repressão do estado. 

 

A guerra de independência da Argélia (1954-1962) teve início com o estouro de protestos pró-independência, motivados por eventos de violência sectária contra nativos. O estado francês encontrava-se fragilizado por sua recente derrota na guerra da Indochina (1946-1954), o que provocou a necessidade de demonstração de forças contra insurgência argelina sob as intenções de se evitar outra derrota- que evidenciaria a fragilização do status francês como Império- e de erguer o capital político do então recém-eleito presidente René Coty. Por sua posição de “mandato”, a possível perda do território argelino representava danos maiores do que uma independência colonial, tratava-se da perda do próprio território nacional francês. 

 

Após violentos conflitos, acompanhados por eventos de tortura, terrorismo e prisões arbitrárias o estado francês, na figura do presidente Charles De Gaulle,  acabou por reconhecer a autonomia do Estado argelino.

 

A importância energética do norte da África no contexto de guerra  

 

A questão que envolve o Saara pode ter consequências maiores, se levado em consideração o atual contexto de segurança energética na Europa. A Argélia é um dos principais fornecedores de gás do continente africano e poderia recorrer à sua função de produtora para influenciar a contenda com os espanhóis. Os países do continente, diante das limitações sobre o fornecimento de gás e petróleo da Rússia, se transformaram em nova fronteira de extração de recursos energéticos. A Itália, por exemplo, já se apressou para assinar acordos com a República do Congo, o Egito e a Argélia. Os argelinos já eram, de longe, os principais fornecedores de gás para a União Europeia, com 12 por cento de sua produção, acompanhada pelos egípcios e os nigerianos. 

 

O continente aparece como uma alternativa aos russos devido à proximidade com a Europa. Os países do norte da África podem exportar gás e petróleo através de dutos que atravessam o Mar Mediterrâneo. Entretanto, para dar conta da demanda europeia, seria necessária a ampliação da estrutura, que levaria anos para ser concluída. Os africanos apresentam grande potencial para a produção de combustíveis fósseis, mas a produção total nos dias de hoje não substituiria a capacidade dos russos. Além disso, alguns países passam por instabilidades políticas que poderiam comprometer o fornecimento para os europeus.

 

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