09 de agosto de 2022
Por Ana Beatriz Aquino, Bruno Fabricio Alcebino da Silva, Gabrielly Provenzzano da Silva, Geovanna Mirian Raimundo, Isabella Brandão Alcantara, Vinicius Silva Santos e Vitor Cristian Maciel Gomes (Foto: Reprodução/Twitter Mercosul)
O anúncio de um tratado de livre comércio entre Uruguai e China enfraquece coesão interna e atinge um dos fundamentos do bloco, a preferência interna para exportações e importações
A 60ª reunião do Conselho do Mercado Comum do Sul (Mercosul), realizada em Luque, no Paraguai, em 21 de julho, exibiu fortes divergências entre seus membros. A mais visível delas foi o relato das tratativas por parte do presidente do Uruguai, Lacalle Pou, de um tratado de livre comércio (TLC) entre seu país e a China, por fora das regras do bloco. O anúncio inicial foi feito em setembro de 2021. O presidente Jair Bolsonaro, do Brasil, não participou.
Esta foi a primeira reunião presencial pós-pandemia do bloco, que tinha como um dos pontos de pauta a aprovação de um acordo de livre comércio do bloco com Cingapura. A cúpula do Mercosul é uma reunião que acontece semestralmente desde 1991 e tem como objetivo geral garantir a colaboração comercial entre os países pertencentes ao bloco econômico.
Entre os papéis que o Mercosul desempenha está o de assegurar que qualquer acordo comercial internacional relacionado aos países integrantes seja manejado de forma a trazer benefícios para todos. Para isso, acordos externos ao bloco são levados à cúpula para que sejam analisados e aprovados em conjunto. No entanto, este regimento, em vigor desde 2000, foi ignorado pelo atual presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, que anunciou a abertura de negociações com a China sem a participação do bloco econômico.
O pronunciamento gerou tensão e os líderes paraguaio e argentino opuseram-se à iniciativa. O fato evidencia sérios problemas enfrentados internamente pelo Mercosul, que se soma ao desinteresse brasileiro, demonstrado pelo ministro Paulo Guedes, antes mesmo da posse de Jair Bolsonaro, em 2018, quando afirmou que o Mercosul não seria prioridade.
A China em cena
O discurso de Lacalle Pou trouxe à luz o início das negociações formais para um tratado de livre comércio entre Uruguai e China, enfatizando a busca de uma “abertura ao mundo” por parte de seu país. No contexto interno do Mercosul, o anúncio do acordo coloca em pauta questões acerca da [falta de] integração entre os países, sua inserção internacional e existência enquanto bloco.
Nos termos em que se apresenta, a condução do TLC esbarra no estatuto do Mercosul. Ali há a exigência de que acordos desse tipo sejam discutidos em consenso pelos países-membros ou negociados em bloco. Para obter a anuência de todos os membros e se manter na normativa, o Uruguai encontra resistência principalmente no governo argentino. Na cúpula, o presidente Alberto Fernández reiterou sua posição ao propor que o acordo fosse lançado em conjunto e assinado pelo bloco, a exemplo do TLC com Cingapura. Nesse caso, é possível que surja um obstáculo adicional na negociação conjunta. Trata-se de uma previsível resistência do Paraguai, ou mesmo por parte da China, já que o país latino-americano é o único da região a manter relações diplomáticas com Taiwan. O fato já representou um obstáculo para que os paraguaios acessassem as vacinas durante a pandemia de COVID-19, tendo em vista o papel dos chineses nesse setor estratégico.
A questão se torna ainda mais delicada com a escalada das tensões entre a China e os EUA, com a recente visita de Nancy Pelosi a Taiwan. O movimento pode demonstrar um jogo de forças entre os países e impactar os acordos com a América Latina. O avanço chinês na região preocupa os EUA, que vem tentando neutralizar a influência do país asiático no continente. Porém, em acordos já estabelecidos, como a relação Paraguai-Taiwan, fechado em fins da década de 1990, o impacto das ações estadunidenses é mínimo, pois Taiwan busca maior integração internacional e reconhecimento, em vista dos conflitos com a China. As trocas entre os países incluem, além de acordos comerciais, fluxos migratórios e integram a última diáspora chinesa.
Negociação individual
O Uruguai, no entanto, parece discordar da necessidade do aval dos demais países para avançar. Dias antes, em entrevista coletiva realizada na Torre Executiva em Montevidéu, Lacalle Pou declarou que a “política uruguaia de relações exteriores com uma vocação de abertura”, nos termos do presidente, “não contraria nem se opõe à adesão ao bloco”. Na cúpula, ele informou que as próximas etapas irão envolver um convite de participação aos membros do Mercosul, mas foi enfático ao declarar que o Uruguai avançará nas negociações com ou sem bloco, pois o TLC “não viola, não erode, nem provoca ruptura em nossa organização”.
Como aludido anteriormente, não é de hoje que o posicionamento uruguaio causa dissenso. No ano passado, antes de declarar interesse em firmar acordos bilaterais com a China, o país apresentou uma proposta de flexibilização das regras do Mercosul que visava, justamente, permitir que cada membro negociasse com terceiros individualmente, sem a necessidade de consenso.
Segundo análise do GT Comércio Internacional, do OPEB, o apoio brasileiro ao Uruguai, na época, conformava a agenda ultraliberal de Paulo Guedes voltada ao bloco — postura que motivou, além disso, a proposta brasileira de redução da Tarifa Externa Comum (TEC). Naquela situação, os interesses brasileiros e uruguaios convergiam por uma agenda de “modernização econômica” e abertura do bloco. Em contrapartida, Argentina e Paraguai argumentaram, respectivamente, que a proposta uruguaia violaria o artigo 1º do Tratado de Assunção sobre a construção de uma política comercial comum e que ela atacaria os fundamentos de uma união aduaneira, estágio prévio para a composição de um mercado comum, que favorece negociações comerciais regionais e prioriza a unidade do bloco. A política comercial comum — cujo maior instrumento no Mercosul é a TEC — é a base da constituição de qualquer bloco econômico interestatal.
Diante dos desdobramentos recentes, Carlos Alberto França, ministro das Relações Exteriores do Brasil, destacou a necessidade de ser flexível, mas preservar “elementos centrais de integração”. Trata-se de postura ambígua frente aos dilemas colocados.
Cooperações variadas
A China, por sua vez, está disposta a cooperar tanto com o Uruguai, quanto com o “Mercosul em seu conjunto”, afirmou o diretor-geral para América Latina e Caribe do Ministério das Relações Exteriores da China, Cai Wei, durante sua estadia em Montevidéu para as tratativas do acordo, no dia 25 de julho. Em declaração à imprensa, ele disse ainda que “a China é uma firme defensora do livre-comércio” e está “disposta a negociar e a firmar TLCs com todos os países interessados”.
Durante anos, o interesse chinês na América Latina esteve concentrado principalmente em setores como energia, mineração e agricultura. Segundo Virginia Papini, pesquisadora da Universidade Nacional de Tres de Febrero na Argentina e membro da Rede China e América Latina: Abordagens Multidisciplinares, até 2010 o investimento estrangeiro direto do país na região estava ligado à garantia do desenvolvimento econômico chinês através da satisfação da demanda de insumos críticos para isso, como petróleo, gás, recursos naturais e agroalimentares, escassos em nível doméstico. Atualmente, os investimentos se voltam também para serviços comerciais e financeiros e para a produção industrial e manufatureira.
Conforme análise do GT China, do OPEB, a expansão da influência política e econômica chinesa na América Latina faz jus às demandas do próprio continente. A partir de investimentos em estrutura ou linhas de financiamento, o país “tem se apresentado como uma alternativa concreta para auxiliar em projetos de interesse para o desenvolvimento da região” — fazendo frente aos Estados Unidos, a outra potência influente no espaço latino-americano e que historicamente o considera como o seu “quintal”.
No entanto, vale destacar que no caso do TLC com o Uruguai a parceria pode ser interpretada como contraproducente em termos de integração regional, na medida em que o avanço das negociações coloca em risco a unidade do Mercosul enquanto bloco.
Laços enfraquecidos
Na esteira das negociações bilaterais entre Uruguai e China, é possível identificar divergências mais profundas sobre a agenda do Mercosul. De um lado, a postura do Uruguai e do Brasil na busca por modernização econômica, fundamentada na flexibilização das regras de negociação de acordos de livre comércio e na redução da TEC; do outro, a postura integradora da Argentina e do Paraguai, ancoradas nos fundamentos de consenso e de unidade do Tratado de Assunção. Ao comentar sobre a situação atual do bloco, Daniel Caggiani Gomes, senador uruguaio pela Frente Ampla e ex-presidente do Parlasul, afirma que “o Mercosul não tem uma estratégia comum e uma liderança política forte e não há um olhar convergente sobre os problemas da região”.
Segundo Félix Peña, diretor do Instituto de Comércio Internacional da Fundação ICBC da Argentina, o avanço do Uruguai em negociações bilaterais com a China é, ainda, um risco às próprias bases do Mercosul. Para ele, a concretização do acordo poderia resultar numa crise profunda capaz de “levar a uma fragmentação do Mercosul ou sua irrelevância definitiva”.
Nesse contexto, a celebração da presidência pro-tempore do Uruguai, que estará à frente do Mercosul pelos próximos seis meses, também não parece promissora em termos de manutenção da unidade do bloco. Conforme Caggiani, o governo de Lacalle Pou não tem vocação integradora e, portanto, dificilmente promoverá uma agenda robusta, pois “o Uruguai deve seguir insistindo em ganhar tempo para alcançar um acordo comercial com a China”. Para uma organização que se pretende, em última instância, comprometida com a integração regional, o cenário como um todo não é promissor: o Mercosul enfrenta, no mínimo, uma desarticulação de interesses internos que o enfraquece enquanto bloco e, no pior dos casos, parece estar diante de uma crise que ameaça sua própria existência.
A próxima cúpula está prevista para dezembro de 2022 ou janeiro de 2023. Os rumos do bloco dependerão muito dos resultados das eleições brasileiras, que podem significar um aprofundamento da postura indiferente do Brasil ou apontar para novos posicionamentos voltados à integração do bloco. Já a presidência do Mercosul estará a cargo da Argentina durante o primeiro semestre de 2023, o que faz com que o Uruguai sinta-se ainda mais pressionado para consolidar seus interesses em relação à China no mandato atual.