A Flexibilização do Mercosul e a atuação do ministério da Economia: o debate sobre a Tarifa Externa Comum

13 de julho de 2021

Por Kayque Ferraz, Mikael Servilha e Felipe Lelli (Foto: Marcos Correa/Agência Brasil)

Com retrocessos no desenvolvimento da economia brasileira, a agenda ultraliberal de Guedes volta-se para o Mercosul com o intuito de implementar medidas para a sua flexibilização. No centro, está a redução da Tarifa Externa Comum (TEC).

Introdução

Ainda no final de 2018, depois do segundo turno das eleições, Paulo Guedes declarou que o Mercosul era muito restritivo e que, assim como a Argentina, não seria prioridade para a sua gestão. Após mais de dois anos de ministério, com retrocessos no desenvolvimento da economia brasileira, a agenda ultraliberal de Guedes volta-se para o bloco, agora com o intuito de implementar medidas para a sua flexibilização. No centro está a redução da Tarifa Externa Comum (TEC), que conta com o apoio do Uruguai. Guedes também se coloca ao lado da proposta uruguaia de flexibilização das atuais regras do Mercosul para permitir que cada membro possa negociar individualmente acordos comerciais com economias extrabloco. Ambas iniciativas são determinantes para o horizonte da integração regional e das indústrias dos países membros.

Histórico da Tarifa Externa Comum

Criado em 26 de março de 1991, pelo Tratado de Assunção, e tendo como membros fundadores Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, o Mercado Comum do Sul (Mercosul) foi idealizado como um mecanismo para a integração dos países sul-americanos nos âmbitos econômico, político e social, além da preservação e promoção da democracia no continente. O eixo central do bloco, porém, estaria em torno da implementação de um mercado comum e da TEC a todos os membros, com livre circulação de bens, serviços, pessoas e mercadorias, cuja implantação só se daria propriamente três anos mais tarde.

Em 1994, foi aprovada e ratificada pela Decisão n.º22/94 do Conselho do Mercado Comum a criação da TEC — um conjunto de alíquotas unificadas para a importação de produtos e serviços vindos de fora do bloco que tem como base a Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM). Aplicada oficialmente em 1995, visava incentivar a competitividade dos Estados e evitar a formação de oligopólios ou de reservas de mercado. Seu princípio geral é a ideia de que produtos com maior valor agregado possuem uma alíquota maior comum a todos os Estados, fundamentada nos 11 níveis de alíquotas que vão de 0% até 20%: matérias-primas vão de 0 a 12%; bens de capital vão de 12 a 16%; e bens de consumo de 18 a 20%. Pela regra atual, cada Estado tem direito a manter uma lista nacional de exceções à TEC. Brasil e Argentina até 100 produtos-códigos NCM; Uruguai e Venezuela até 225 códigos NCM; e Paraguai até 649 códigos NCM.

A TEC difere a Zona de Livre Comércio da União Aduaneira. Enquanto na primeira há apenas a eliminação de barreiras tarifárias entre os Estados, na segunda, a existência da TEC aprofunda a integração criando uma política tarifária comum em relação a Estados não-membros do bloco. Assim, a TEC busca garantir equidade de condições de concorrência no âmbito do Mercosul

Fases do Mercosul 

De forma objetiva, pode-se dizer que o Mercosul passou por três grandes momentos que se alinham à proposta de regionalismo defendida pelos Estados membros. Entre 1995 e o início dos anos 2000, o bloco foi orientado pelo chamado regionalismo aberto buscando uma integração econômica a partir da liberalização comercial. O objetivo era “eliminar as barreiras aplicáveis à maior parte do comércio de produtos e serviços entre os signatários”. Nesse sentido, o Tratado de Assunção entendia a coordenação de políticas macroeconômicas, o estabelecimento da TEC e a adoção de acordos setoriais como instrumentos centrais ao objetivo liberalizante.

Nos anos 2000, o regionalismo sul-americano e o próprio Mercosul foram direcionados a um novo caminho. Com a ascensão dos governos progressistas na região, a integração avançou para além dos objetivos comerciais, sendo compreendida também como ferramenta de integração dos Estados membros pelas vias política, social e cultural, por exemplo. Guiado pelo regionalismo multidimensional ou multifacetado, o Mercosul ampliou sua atuação para outros temas, lançando projetos como o FOCEM (Fundo de Convergência Estrutural), o Parlasul (Parlamento do Mercosul) e a UPS (Unidade de Apoio à Participação Social). O aspecto comercial não foi deixado de lado. Entendia-se que o aprofundamento da integração em outras áreas poderia expandir também as relações comerciais e o acesso aos mercados vizinhos. Nesse período, inclusive, o fluxo comercial no Mercosul aumentou significativamente. O protagonismo do Brasil foi notável. Houve grande projeção política do Estado brasileiro e de seus atores privados.

O terceiro momento iniciou com a crise de 2008, com impactos às relações comerciais. Tendências protecionistas, acordos de comércio bilaterais, queda nos preços da commodities e os novos governos nos países sul-americanos são alguns dos elementos desse contexto. Houve mudanças também nos processos de integração regional. A Unasul (União das Nações Sul-americanas) foi paralisada e depois abandonada, a ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América) enfrentou desafios após a morte de Chávez, e o Mercosul entrou em crise com a suspensão da Venezuela, os golpes no Paraguai e no Brasil e a eleição de Macri na Argentina.

A partir de então, o projeto de regionalismo na região voltou às origens, ao Regionalismo Aberto. A ascensão de governos de direita direcionou a região ao já conhecido liberalismo. Isso significa que as propostas de integração que extrapolavam os limites econômicos comerciais foram redefinidas e aprofundadas. São evidências mais recentes dessa realidade a criação do Prosul, a aprovação do Acordo Mercosul-União Europeia, o Acordo sobre Comércio Eletrônico do Mercosul, o Acordo de Livre Comércio entre Brasil e Chile e o posicionamento brasileiro sobre a TEC no Mercosul.

Andamento dos debates

Encabeçada pelo Ministério da Economia (ME) do Brasil, a atual proposta de reforma da TEC defende uma redução de 10% da alíquota de importação assim que for acordada, seguida por outra redução de 10% no final de 2021. Com isso, a TEC média que atualmente é de 11,7% passaria a ser, ao final de 2021, de 9,48%. Nesses moldes, o resultado da redução das tarifas representaria uma maior abertura unilateral para as importações de produtos de fora do Mercosul. A proposta seria debatida no início de junho, mas a reunião foi adiada. Existe a expectativa de que as conversas sejam retomadas em breve.

Em contrapartida, a iniciativa do ME vem encontrando resistência, em especial de grupos de industriais, de ex-presidentes brasileiros e do governo  da Argentina.

Do lado argentino, uma única redução de 10% da alíquota pode ser aceita se forem aplicadas somente a três quartos das tarifas a partir de janeiro de 2022. Em relação à segunda redução defendida pelo Brasil, a Argentina só estaria disposta a negociar a partir de 2023.

No início de junho, os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula divulgaram nota conjunta apoiando o presidente da Argentina, Alberto Fernandez, que vem sendo resistente também à abertura para negociações individuais. A nota destaca que “este não é o momento para reduções tarifárias unilaterais por parte do Mercosul, sem nenhum benefício em favor das exportações do bloco”.  

Em declaração conjunta de 10 de junho, a União Industrial Argentina e a Confederação Nacional da Indústria (CNI), do Brasil, se opuseram à iniciativa de redução unilateral das tarifas e de abertura para negociação individual com terceiros países.  Similarmente, a IndustriAll Brasil assinou, em 24 de junho, nota conjunta também com a CNI contra a proposta brasileira em relação à TEC. Para ambas, a abertura para negociações individuais representaria o enfraquecimento do bloco e de seu poder de barganha. Além disso, o texto defende que a abertura comercial do Mercosul deva ocorrer por meio de acordos de preferência de comércio negociados pelo bloco, em contraposição à proposta de Guedes. 

O mais recente capítulo dos debates no âmbito do Mercosul se deu durante a Cúpula dos Chefes de Estado dos países-membros, realizada em 08 de julho, que marcou o início da presidência brasileira do bloco para o próximo semestre. O evento testemunhou novamente o dissenso entre membros. Do lado uruguaio, o discurso de Lacalle Pou reafirmou a declaração dada no dia anterior, que seu governo deverá abrir negociações diretas com economias extrablocos. Para a Argentina, a postura do Uruguai poderia representar uma ruptura no bloco ao violar o Artigo 1º do Tratado de Assunção sobre a construção de uma política comercial comum.

A Cúpula contou também com falas marcantes do presidente brasileiro. Bolsonaro avaliou que o último semestre do Mercosul – leia-se, a presidência pro tempore da Argentina – “deixou de corresponder às expectativas e necessidades de modernização do Mercosul”. Para o presidente, a não revisão da TEC e a não flexibilização de negociações comerciais com terceiros são evidências da “ineficiência, desperdício de oportunidades e restrições comerciais do bloco. Como forma de “modernização da agenda econômica”, destacou que, no próximo semestre, a presidência brasileira buscará o “resgate dos valores originais do bloco. Associados à abertura e à busca da maior e melhor integração de nossas economias, nas cadeias regionais e internacionais de valor.

O encontro escancara a divisão interna do Mercosul. Argentina e Paraguai têm se colocado do lado oposto ao Brasil e Uruguai no tema da flexibilização do bloco. A declaração unilateral do Uruguai sobre iniciar negociações com países não membros acirra as divergências, não por ser uma demanda nova, mas pelo anúncio repentino, e se soma ao ímpeto brasileiro em revisar a TEC no próximo semestre. Enquanto isso, o setor industrial volta a se posicionar: “Reafirmamos nossa preocupação com a possibilidade de que se adotem decisões que podem ter um grande impacto na cadeia produtiva”, declarou em nota o Conselho Industrial do Mercosul – formado pelos presidentes da Confederação Nacional da Indústria (CNI), da União Industrial Argentina (UIA), da União Industrial Paraguaia (UIP) e da Câmara de Indústrias do Uruguai (CIU).

A percepção é que a atual política do Brasil para o Mercosul é mais um forte demonstrativo da postura brasileira cada vez mais ofensiva no comércio internacional, o que suscita questionamentos sobre os efeitos para o desenvolvimento do país. Está cada vez mais evidente que o projeto ultraliberal do ME busca direcionar o Mercosul para uma flexibilização até mais profunda do que aquela vista na década de 1990. Diferente do discurso de Bolsonaro sobre um retorno “aos valores originais” e distante do objetivo central do Tratado de Assunção de acelerar o desenvolvimento econômico dos Estados membros, a atuação do ME parece querer conduzir o país para o penhasco da desindustrialização.

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