Presidência infectada

Por Ana Tereza Lopes Marra de Sousa 

O capital político do Brasil na saúde global está em plena destruição e muito pode ser creditado à presidência de Bolsonaro. Desde o início da pandemia de coronavírus, o presidente tem sido reconhecido por seu negacionismo e irresponsabilidade

No último dia 7 de julho foi confirmado o diagnóstico de Covid-19 do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. Aparte das polidas mensagens oficiais desejando boa recuperação, a repercussão da notícia no cenário internacional não só não causou empatia, como reforçou: i) a saudade de um tempo em que o Brasil era importante ator da diplomacia da saúde; ii) a incapacidade do governo federal no combate à Covid-19; iii) a projeção da imagem do Brasil como um pária na pandemia.

No tema da saúde global, até há pouco tempo, o Brasil era um país com importantes contribuições. Lista-se algumas. Foi, por exemplo, por insistência da China e do Brasil que se deram as discussões que levaram a constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1948. Destaca-se ainda, com a Constituição Federal de 1988, que o país criou o Sistema Único de Saúde (SUS), um dos únicos programas do mundo a ser universal, gratuito e público.

Papel ativo na OMC

Já no início da década de 2000, contrariando os interesses de grandes indústrias farmacêuticas, o Brasil teve papel ativo na Organização Mundial do Comércio (OMC) em um contencioso contra os EUA para flexibilizar direitos de propriedade intelectual em caso de necessidade de saúde pública. O país obteve licença compulsória para vários medicamentos em atendimento a pandemia de AIDS/HIV – fato que beneficiou os países em desenvolvimento. Acrescenta-se que durante o governo Lula, a diplomacia de saúde do país foi marcada por intenso ativismo por meio da cooperação Sul-Sul, principalmente com parceiros da África e América Latina, definindo para o Brasil um papel internacional de “significante contribuinte e player na agenda internacional para a saúde”. 

Nos últimos anos, destaca-se o papel importante que os epidemiologistas do SUS tiveram na rápida identificação e encaminhamento da epidemia do Zika vírus em 2015 e nas articulações do Brasil para defesa da cobertura universal de saúde. Isso resultou a criação de uma declaração da ONU em Universal Health Coverage (UHC), em 2019.

Contudo, esse capital político do Brasil na saúde global está em plena destruição e muito pode ser creditado a presidência de Bolsonaro. Desde o início da pandemia de coronavírus, o presidente tem sido reconhecido pelos seguintes comportamentos: negação da severidade da doença; desconsideração de orientações científicas e de órgãos especializados (dentre eles a OMS e seu próprio ministério da saúde) como parâmetros para vida pública; patrocínio de soluções já tidas como ineficazes (como o uso da hiroxiloroquina) para a prevenção e tratamento da doença; e, dentro outros, incentivo ao desrespeito a medidas comprovadamente eficazes para lidar com a pandemia, como o uso de máscaras e o isolamento social.

Fragilização do combate à pandemia

Tais ações do presidente fragilizam o combate a Covid-19 no país, que se encontra há dois meses sem ministro da Saúde e guarda a segunda colocação mundial em número de casos e mortes.

Especialistas alegam que mesmo que o SUS tenha seus problemas, muitos deles ligados a cortes de recursos nos últimos anos, a principal questão que impede a melhor atuação do país perante a pandemia é a falta de coordenação do governo federal. Isso ocorre não só com relação as decisões sobre a mobilização de recursos do Sistema e protocolos de saúde, mas também com relação as medidas econômicas e sociais que deveriam mitigar as consequências do isolamento.

As falhas técnicas, o baixo valor e a insegurança com relação a continuidade do pagamento de auxílio emergencial aos mais pobres, bem como as dificuldades de acesso a crédito por parte das empresas acabam por favorecer pressões para a mitigação do distanciamento mesmo com o crescimento de casos e mortes relacionadas ao Covid-19. Diante da má gestão da saúde e da economia, o governo de Bolsonaro acaba por forçar parte da população a escolher a se arriscar ao contágio, ou a passar privação de necessidades materiais básicas.

Frente a esse cenário doméstico que projeta externamente um Brasil fraco, o diagnóstico de Covid-19 do presidente surgiu apenas como mais uma oportunidade de o mundo lembrar a tragédia – evitável em partes – que se tornou a pandemia no Brasil. Sem empatia, a imprensa internacional destacou amplamente a ironia do negacionismo do presidente brasileiro perante a “gripezinha”, rememorando os aspectos típicos de seu comportamento: não usar máscara (ou usar de modo incorreto), frequentar aglomerações, banalizar o distanciamento social, etc.

Alinhamento com os EUA

A doença do presidente também chamou atenção, mais uma vez, para o alinhamento do Brasil com os EUA. No dia 4 de julho, Bolsonaro tinha comemorado o feriado de independência dos EUA na casa do embaixador do país no Brasil. Ernesto Araújo, que também estava presente na ocasião, tem gerido o Itamaraty emulando diversos posicionamentos estadunidenses. A Casa de Rio Branco, antes importante na diplomacia de saúde brasileira, opera agora uma política que nega a importância da cooperação multilateral e esvai-se dos esforços sanitários regionais. O país não esteve envolvido em importantes iniciativas perpetradas pela ONU e pela OMS para as discussões sobre a vacina para a Covid-19. Ainda, imitando o governo Trump, Bolsonaro ameaçou retirar o Brasil da OMS.

Vale recordar também que os EUA desovaram no Brasil 2 milhões de doses de cloroquina, remédio que Bolsonaro afirma estar tomando e que Trump disse já ter tomado como prevenção a Covid-19, apesar de toda evidência cientifica apontar que a droga, além de não ser adequada para essas funções, pode gerar sérios danos colaterais. Como Trump, a presidência de Bolsonaro reforça com isso a guerra de desinformação e fake news travada contra o conhecimento científico estabelecido.

Tudo indica que o presidente deve se sair bem da doença, pois não desenvolveu uma forma grave. Contudo, como afirmou o título de um artigo na prestigiosa revista Foreign Affairs, “Bolsonaro fez do Brasil um pária na pandemia”.

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