Bolívia, a democracia do novo anormal

Por Ingrid Meirelles, João Victor Pennacchio, Talita de Paula Duarte e Thauany Nazarethe Cirino

Com eleições marcadas para outubro, Bolívia vive tensões patrocinadas pelo governo formado pelas forças que derrubaram Evo Morales

 No final de julho, o Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) da Bolívia decidiu adiar a data das eleições presidenciais – que se realizariam em 6 de setembro – para 18 de outubro. O argumento envolve as incertezas diante da pandemia de coronavírus. A mudança de data acirra acusações por parte do Moviento ao Socialismo (MAS), do ex-presidente Evo Morales, de que o primeiro pleito após sua derrubada não acontecerá em clima tranquilo. Há várias denúncias de aliados de Morales sobre restrições à livre manifestação por parte da administração interina de Jeanine Áñez.

 

O golpe de Estado boliviano, deflagrado em 10 de novembro de 2019, fecha um período democrático e de afirmação dos setores pobres inédito na história do país vizinho. E introduz no continente uma modalidade nova de ruptura institucional. Não se trata de uma sublevação militar associada a setores empresariais e estadunidenses, como nos tempos da Guerra Fria, e nem de um golpe parlamentar, a exemplos de Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016). Houve ali um rompimento que combina pressão das instituições de segurança pública (Forças Armadas e polícias) com chantagem armada de grupos paramilitares que agem à margem da legalidade. Vale a pena recapitular o processo.

Na presidência da Bolívia havia 14 anos, Evo Morales disputou sua quarta eleição presidencial consecutiva em outubro de 2019 contra seu oponente de maior expressão, o ex-presidente Carlos Mesa, do partido Comunidade Cidadã, de centro-direita.

Supostas irregularidades

A vitória de Morales no primeiro turno, em 20 de outubro, no entanto, sofreu denúncias de irregularidades e suscitou a insatisfação de amplos setores bolivianos que questionavam sua legitimidade e mobilizaram-se em violentos protestos por toda a Bolívia. A conivência das Forças Armadas com os protestos levou à renúncia do presidente, assim como de outras autoridades políticas associadas a ele.

A contestação dos resultados baseava-se fundamentalmente em dois fatores: a mudança das regras eleitorais dois anos antes, que facultou ao presidente se candidatar ao quarto mandato consecutivo e à paralisação do sistema de Transmissão de Resultados Eleitorais Preliminares (TREP) por parte do TSE, procedimento estatístico que busca prever os resultados utilizando fotografias das atas de votação e permite a dupla checagem de dados.

Em 2017, o TSE contrariou o resultado de um plebiscito realizado no ano anterior, no qual a população se opôs à possibilidade de um mandatário se candidatar mais de duas vezes ao mesmo posto. As regras eleitorais foram modificadas para que Evo Morales se candidatasse para seu quarto mandato consecutivo. Some-se a isso uma confusa apuração dos votos. Com 83% dos sufrágios apurados, subitamente a transmissão foi interrompida na noite de 20 de outubro, sendo retomada apenas no dia seguinte. Com 95% da contagem concluída, apontou-se a vitória presidencial de Morales, com 47,1% de votos contra 36,5% de Carlos Mesa.

As Forças Armadas no golpe

Os protestos que exigiam a renúncia de Morales e a convocação de novas eleições se alastraram pelo território boliviano e foram organizados principalmente pelo líder de extrema-direita Luis Fernando Camacho. Apesar de não ocupar nenhum cargo político, Camacho vocalizou um discurso religioso e conservador e tornou-se figura importante na oposição ao governo de centroesquerda. A escalada dos protestos revelou passividade inicial das Forças Armadas diante dos acontecimentos. A polícia boliviana chegou a engrossar os protestos em algumas cidades, como Cochabamba, Sucre e Santa Cruz. Já em La Paz, os policiais abandonaram seus postos na guarda externa do palácio presidencial.

Diante das suspeitas de fraude eleitoral, a Organização dos Estados Americanos (OEA) solicitou uma auditoria para averiguar a veracidade das acusações. Com a divulgação do relatório preliminar no dia 10 de novembro, que indicava irregularidades e manipulações, Evo Morales anunciou a convocação de novas eleições presidenciais, assim como a renovação do quadro de magistrados do Tribunal Supremo Eleitoral.

A despeito desse pronunciamento, que visava pacificar os protestos e restabelecer a ordem, o chefe das Forças Armadas e da Polícia, general Williams Kaliman, recomendou publicamente, no início da tarde daquele dia, que Morales renunciasse, o que ocorreu cerca de uma hora depois. Vale notar que o presidente não renunciou ao mandato para o qual havia sido eleito – e que teria início em janeiro de 2020 – mas sim do que estava em curso, sobre o qual não pairavam acusações.

À renúncia se sucederam saques e queima de casas de políticos do MAS, episódios de violência contra lideranças eleitas e suas casas, além da prisão da presidente do TSE, Maria Eugenia Choque, e de seu vice Antonio Costas. A passividade das Forças Armadas foi fator decisivo para a renúncia do chefe do Executivo.

Sabotagem internacional

Com uma das economias menos diversificadas do planeta, a pauta exportadora da Bolívia é composta por minerais em estado bruto e gás natural. A política econômica durante os mandatos presidenciais de Evo foi marcada por programas de redistribuição de renda e nacionalização da exploração dos recursos do país, fator que, possivelmente, teria fomentado o golpe. Isso porque, o interesse do dirigente era que os recursos minerais beneficiassem a população boliviana e não as mineradoras transnacionais. A Glencore, por exemplo, uma das poucas companhias que controlam o comércio mundial de minérios, teve três de suas operações nacionalizadas durante os mandatos do líder do MAS. A multinacional britânica alega um prejuízo de, aproximadamente, US$778,2 milhões de dólares com o episódio.

A tese é reforçada recentemente por um polêmico tweet do bilionário sul-africano-canadense-americano Elon Musk, dono da maior produtora de carros elétricos do mundo, a Tesla, no dia 25 de julho de 2020. Após ser confrontado com a ideia de que o Departamento de Estado dos Estados Unidos teria arquitetado um golpe contra a presidência de Evo Morales pelo interesse nas reservas de lítio do país, essencial para a produção de automóveis elétricos, o empresário respondeu: “Nós [os Estados Unidos] daremos um golpe em quem nós quisermos. Lide com isso”. A Bolívia, para mal ou para bem, detém 70% das cobiçadas reservas mundiais de lítio, além de outras reservas minerais e energéticas significativas, como zinco, cobre e ouro.

O governo interino de Jeanina Áñez

A renúncia de Evo Morales foi sucedida por outras renúncias de autoridades bolivianas, como o vice-presidente Álvaro García Linera, o líder da Câmara Victor Borda e a presidente do Senado Adriana Salvatierra, gerando um vácuo de poder que suscitou contradições na linha sucessória. Inicialmente, a segunda vice-presidente do Senado Jeanine Áñez sucedeu ao ex-presidente de forma provisória. Sua transição como presidenta interina, no entanto, foi aprovada por somente um terço do Congresso, não tendo quórum suficiente, de acordo com a Constituição do país. Seu mandato suscitou protestos por partidários do MAS e por apoiadores de Evo Morales que questionam a legitimidade de sua eleição indireta. A indicação não contou com apoio majoritário no Parlamento e a convocação de novas eleições esteve coberta de incertezas.

O governo brasileiro foi o primeiro da região a abertamente endossar a renúncia de Evo e a autoproclamação de Anez. O ministro das relações exteriores Ernesto Araújo afirmou que  “Não há nenhum golpe na Bolívia. A tentativa de fraude eleitoral maciça deslegitimou Evo Morales, que teve a atitude correta de renunciar diante do clamor popular. O Brasil apoiará a transição democrática e constitucional’’. O governo argentino, à época liderado por Mauricio Macri, não apontou irregularidades. Por fim, os Estados Unidos também endossaram a posse de Jeanine Anez e apoiaram o relatório final da OEA que apontou fraude eleitoral. O presidente Donald Trump afirmou que a renúncia de Morales representa ‘’um significativo momento para a democracia no Hemisfério Ocidental’’ e que a decisão do ex-presidente em deixar o cargo preserva a democracia na Bolívia.

Paralelamente, os governos do México e Uruguai repudiaram o golpe de Estado sofrido pela Bolívia e declararam apoio a Evo Morales. O governo do México declarou que reconhece Evo Morales como presidente legítimo da Bolívia e concedeu asilo político a ele e às outras autoridades políticas que renunciaram. O Uruguai, assim como o México, condenou a  autoproclamação de Áñez. Cuba e Venezuela também contestaram a ruptura institucional.

Transição democrática ou golpe?

O que deveria ser um governo interino e de transição tem se prolongado por mais tempo do que se esperava. A pandemia do coronavírus tem sido a justificativa para os adiamentos da eleição, inicialmente marcada para 3 de maio e agora adiada para 18 de outubro.

Enquanto se discute a possibilidade de um novo adiamento, o Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) segue com um processo contra o MAS, que pode eliminá-lo da corrida eleitoral. O MAS, que tem como candidato o ex-ministro da economia Luis Arce, ainda aparece na liderança dos demais candidatos com cerca de 40% dos votos válidos de acordo com pesquisa realizada pelo Celag (Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica). Em 21 de julho, nova sondagem realizada pela empresa Ipsos apontava Arce empatado com o ex-presidente Carlos Mesa, com 26% das intenções de voto.

Dois estudos realizados em 2020, apontam que o relatório da OEA mostra-se falho, e não há evidência estatística de fraude nas eleições bolivianas. O primeiro trabalho, publicado pelo jornal The Washington Post e realizado pelos pesquisadores John Curiel e Jack R. Williams, ambos do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) nos EUA, concluiu que ‘’não ocorreu diferença estatisticamente significativa na margem antes e depois da interrupção da votação preliminar’’.

O segundo levantamento, publicado pelo The New York Times, também indica que não houve irregularidades. A pesquisa foi realizada por Nicolas Idrobo e Dorothy Kronik, da Universidade da Pensilvânia e Francisco Rodríguez, da Universidade de Tulane nos Estados Unidos. Rodriguez afirma que uma vez extraídos os problemas nos métodos usados pela OEA, o resultado final da apuração não aparece mais como divergente.

A despeito das interpretações da renúncia de Evo Morales como uma resposta legítima à “vontade popular”, a análise dos principais fatores envolvidos nos episódios que culminaram com o fim de seu governo de 14 anos na Bolívia revela que o que ocorreu foi, de fato, um golpe de Estado. Em especial, destacam-se o papel das Forças Armadas, que recomendaram a renúncia do ex-presidente, e interesses econômicos e geopolíticos na região, que entravam em conflito com os projetos governamentais para a nacionalização dos recursos e da economia boliviana.

No meio da crise, a pandemia

Até 2 de agosto, a Bolívia acumulava cerca de 80 oitenta mil casos de Covid-19 e mais de três mil mortes. As regiões que mais sofrem com pandemia são as de Santa Cruz, La Paz e Cochabamba que acumulam respectivamente 34.972, 16.823 e 9.626 infectados, de acordo com dados fornecidos pelo ministério da Saúde boliviano.

Ao contrário do Brasil, o país vizinho com o qual divide 3,4 mil quilômetros de fronteira, a Bolívia adotou medidas duras no combate à doença, tais como: toque de recolher, fechamento de fronteiras e suspensão de transporte tanto interdepartamental como interprovincial. Ainda assim, as decisões referentes às eleições ferem o artigo 169 da Constituição da Bolívia, segundo o qual um novo pleito deveria ser convocado em um prazo máximo de 90 dias. Ficam evidentes as intenções do governo golpista de prevalecer no poder, além de alimentar incertezas que criam tensões que ainda geram protestos no país.

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