Governo propõe transformação econômica sustentável

06 de setembro de 2023

Por André Cotting, Lais Pina, Lucas Rocha, Priscila Honório Sales, Rodolfo Vaz, Olympio Barbanti (Imagem: Ricardo Stuckert/PR)

 

Uma no prego, outra na ferradura! Governo propõe transformação econômica rumo à sustentabilidade, mobiliza atores nacionais e internacionais, mas mantém incentivos à economia baseada em carbono.

 

O governo brasileiro lançou em 2023 as bases para uma verdadeira transformação econômica no Brasil com foco na sustentabilidade. Nesse sentido, órgãos de governo, sociedade e setor privado têm sido articulados para compor uma série de ações ambiciosas. Nesse cenário, que tem mobilizado discussões em todos os setores da sociedade, e movimentado articulações internacionais, duas questões merecem análise.

 

Primeiramente, embora tais iniciativas estejam alocadas em diversos órgãos, parece existir – ao menos em uma narrativa constante – um projeto interinstitucional com o mesmo destino: a implementação do desenvolvimento sustentável no Brasil. Entretanto, tamanha dispersão levanta questionamentos: todas as iniciativas estão alinhadas e serão acompanhadas conforme planejado? A convivência de múltiplos planejamentos em esferas separadas poderá levá-los a conflitos no decorrer do governo? A melhor opção seria compilar todas as ações dentro de um único plano estruturado?

 

Uma segunda questão que se coloca é que o governo mantém uma agenda de extração e uso de óleo e gás, inclusive na região amazônica, o que vem acompanhado de incentivos ao agronegócio, com discurso de sustentabilidade por meio da adoção de sistemas agrícolas de baixo carbono, mas sem restrição ao uso de agrotóxicos, que são formulados a partir de petróleo. São também frequentes as falas do presidente Lula sobre a necessidade de redução da pobreza no país, sendo que o mesmo faz constante menção a que isso viria acompanhado da aquisição de bens de consumo duráveis, como veículos – o que difere de uma posição mais sustentável, que defenda o transporte público para todos – inclusive para quem hoje depende do carro para se locomover.

 

Enfim, é a partir dessas contradições que discutimos as iniciativas de transformação sustentável apresentadas pelo governo brasileiro, e, no contexto de importantes discussões sobre o tema, questionamos o alcance dessas medidas para a promoção de uma verdadeira transformação econômica do Brasil em direção à sustentabilidade.

 

A sustentabilidade como estratégia interinstitucional 

 

Iniciativas relacionadas à promoção de sustentabilidade têm sido divulgadas por diversos órgão do Executivo, como o Ministério da Fazenda, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), o Banco Central do Brasil (BACEN) e o Banco Nacional do Desenvolvimento Social (BNDES) fazem parte de um grande grupo, cujas propostas dialogam com alternativas de exploração econômica dos recursos naturais, em especial na Amazônia, além da estruturação de um mercado nacional de carbono.

 

O MDIC, por meio da Secretaria de Economia Verde, Descarbonização e Bioindústria, propõe uma estratégia central nessas discussões. Trata-se da ENIMPACTO: Estratégia Nacional de Economia de Impacto. Em conjunto com a sociedade civil e o setor privado, o objetivo é promover um ambiente favorável ao desenvolvimento de investimentos e negócios de impacto, ou seja, iniciativas que equilibram a busca de resultados financeiros e a solução para problemas sociais e ambientais. Para isso, é necessária a elaboração de políticas que devem ampliar a oferta de capital para a economia de impacto, aumentar o número de negócios e possibilitar articulação interfederativa com Estados e Municípios no fomento à economia de impacto.

 

O Governo Federal também lançou a nova versão do Programa de Aceleração do Crescimento (novo PAC), cujo objetivo é impulsionar o desenvolvimento socioeconômico do Brasil. Dentro deste programa, está o Plano Verde, também chamado de Plano de Transformação Ecológica. Desenhado pelo Ministério da Fazenda, possui a intenção de concretizar um novo desenvolvimento econômico sustentável, representando uma forte ambição do governo para os próximos três anos e meio.

No campo econômico, o BACEN também tem se manifestado, lançando e atualizando medidas que padronizam e regulamentam o controle de riscos sociais, ambientais e climáticos, tema aprofundado no artigo sobre liderança ambiental brasileira, publicado em julho de 2023.

 

No setor produtivo, o BNDES também aparece como um ator engajado em temática sustentável. Em documento público sobre sua contribuição para uma transição justa, o BNDES afirma compromissos com uma agenda socioambiental e, principalmente, com um futuro neutro em carbono. O Banco se fundamenta na abordagem do Big Push Ambiental para propor um conjunto de políticas e investimentos a fim de redirecionar a economia nacional para padrões de sustentabilidade em setores estratégicos, tais como: energia, logística, mobilidade urbana, agropecuária, indústria e saneamento.

 

O MMA criou a Secretaria Nacional de Bioeconomia. Sua instituição justifica-se pelo potencial de aproveitamento dos ativos ambientais no país. Uma de suas atribuições é implantar um plano nacional de desenvolvimento da bioeconomia. Outra secretaria recém-criada pelo MMA é a de Povos e Comunidades Tradicionais e Desenvolvimento Rural Sustentável. A pasta se propõe a criar estratégias para agregar valor com base no uso sustentável de recursos naturais concomitantemente à consecução do direito ao território de povos originários, comunidades tradicionais, agricultores familiares e assentados de reforma agrária.

 

O Plano Safra 2023/2024, com o maior orçamento da história, é uma dessas iniciativas. Focado em sustentabilidade, o plano propõe taxas de juros diferenciadas para produtores que aderirem ao RenovAgro (Programa de Financiamento a Sistemas de Produção Agropecuária Sustentáveis, antigo Programa Agricultura de Baixo Carbono) e se comprometerem com o financiamento de técnicas de produção menos intensivas em carbono. Outro objetivo do Plano é o incentivo ao uso de bioinsumos, o que poderá contribuir com os esforços do Governo de reduzir a dependência externa de fertilizantes em cerca de 55% até 2050.

 

Em suma, esses órgãos têm planejado ações que visam à incorporação de inovação e tecnologia na economia brasileira, de modo a aumentar sua produtividade e, ao mesmo tempo, se desenvolver dentro de uma relação mais respeitosa com o meio ambiente. Fato é que tem ocorrido uma intensa movimentação em âmbito nacional. Órgãos diferentes estão coordenando ações de sustentabilidade e, cada vez mais, surgem novas iniciativas. Nesse sentido, têm sido organizadas variadas frentes de diálogo com ênfase na sociedade civil, nas relações políticas regionais e no setor privado. No mês de agosto do presente ano de 2023, o foco está voltado para a Amazônia, por  meio da realização de diversos eventos.

 

Diálogos Amazônicos

 

Os Diálogos Amazônicos, evento preparativo para a Cúpula da Amazônia, reuniram 27 mil pessoas, em Belém (PA), entre os dias 04 e 06 de Agosto. O encontro procurou assegurar um espaço para a participação da sociedade civil na Cúpula e contou com representantes de entidades, movimentos sociais, academia, centros de pesquisa e agências governamentais do Brasil e demais países amazônicos. O evento teve como objetivo discutir estratégias para o futuro da região amazônica, da sua biodiversidade e de seus povos, materializada na forma de propostas aos chefes de Estado durante a reunião da Cúpula da Amazônia.

 

Cúpula da Amazônia

 

Poucos dias depois, entre 08 e 09 de agosto, foi organizada a “Cúpula da Amazônia”, um momento político declaratório com países da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) com foco em fortalecer relações políticas de governos que dividem o bioma amazônico. A Cúpula reuniu presidentes e representantes de Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela com o intuito de chegar a um acordo sobre futuras estratégias conjuntas que protegessem a floresta tropical, e ao mesmo tempo, desenvolvessem a região de forma sustentável.

 

Como resultado, foi redigida a “Declaração de Belém”, que deveria estabelecer uma nova agenda comum de cooperação regional em favor do desenvolvimento sustentável da Amazônia, conciliando aspectos como a proteção do bioma, inclusão social, estímulo à economia local e valorização dos povos indígenas.Contudo, a declaração tem sido muito criticada devido à falta de ações concretas para lidar com o chamado “caos da Amazônia”.

 

Na prática, a única meta estabelecida foi em relação à mudança do clima: ficou definido que os países desenvolvidos devem mobilizar US$100 bilhões por ano em financiamento climático para apoiar as necessidades dos países em desenvolvimento. Sobre os demais tópicos, foi proposta a criação de diversos programas, observatórios, projetos e grupos de estudo para tratar de problemáticas específicas, mas não estão claras quais ações serão tomadas, nem o prazo dentro do qual devem acontecer.

 

Também ficaram pendentes discussões acerca do ponto de não retorno. No documento final, o termo foi citado quatro vezes, mas em nenhuma delas há um plano claro para evitar que o desmatamento da Amazônia seja tão intenso que se torne irreversível. Sobre a extração de petróleo e minerais, a Declaração de Belém também deixou a desejar. Apenas expressou-se a intenção de iniciar um diálogo entre os Estados Partes sobre a sustentabilidade de setores como mineração e hidrocarbonetos na região.

 

De modo geral, a Declaração de Belém permaneceu abaixo das expectativas no sentido de (i) assumir metas comuns de desmatamento entre os Estados Partes; (ii) estabelecer um plano de ação concreto para lidar com o caos da Amazônia; e (iii) decidir sobre a exploração de petróleo e minerais na região. Como consequência da falta de resoluções claras, a repercussão foi negativa. As discussões da Cúpula ecoaram como inconclusivas e foi muito destacada a falta de consenso entre os países para estabelecer metas comuns em combate ao desmatamento.

 

Por outro lado, pontos importantes foram colocados em evidência durante a Cúpula, como a necessidade de proteger territórios indígenas, respeitar os direitos humanos e valorizar os saberes das comunidades locais. Além disso, houve ênfase na garantia de acesso à energia, água potável, saneamento e alimentação saudável para as comunidades locais, reforçando também a necessidade de erradicar a exploração ilícita de minerais e a exposição de populações a substâncias químicas, sobretudo o mercúrio.

 

Ao final do encontro, o Presidente da República da Colômbia sugeriu a convocação da V Reunião de Presidentes dos Estados Partes do Tratado de Cooperação Amazônica em agosto de 2025, demonstrando a necessidade e o interesse em aprofundar a discussão.

 

Novas Economias e EXPOSIBRAM

 

Ainda dentro do espectro de discussões acerca da transformação verde, ocorre entre os dias 30 de agosto e 01 de setembro a Conferência Internacional Amazônia e Novas Economias, liderada pelo setor privado. O objetivo deste encontro é apresentar possíveis contribuições das indústrias para as novas economias e criar uma rede de articulação e apoio às novas iniciativas, reconhecendo a necessidade de um futuro sustentável para a Amazônia com conservação, desmatamento líquido zero e bem-estar social. 

 

A expectativa é que participem dessa reunião sobretudo especialistas, executivos de empresas, profissionais de ESG e negócios de impacto, os quais devem contribuir com uma agenda para promover ações entre setor público, privado, sociedade civil e comunidades.

 

Além disso, entre os dias 28 e 31 de agosto ocorre a EXPOSIBRAM 2023. Quase que simultaneamente às Novas Economias, empresas de mineração se unem para discutir suas práticas em separado. Por meio de exposições e debates em congressos, a EXPOSIBRAM tem o objetivo de criar conexões com empresas e profissionais por meio de discussões acerca do contexto político e socioeconômico global, dando ênfase às perspectivas do setor mineral. A programação considera pautas como negócios, tecnologia, inovação, diversidade, responsabilidade social e meio ambiente.

 

E o agronegócio?

 

Desde sua participação na COP 27, Lula sinalizou que haveria um fortalecimento da agenda ambiental, porém, o presidente vem enfrentado a resistência do grupo que representa a maior parcela das exportações brasileiras. Apesar de ter instituído um arranjo intersetorial para alavancar o desenvolvimento econômico sustentável, notam-se divergências, por exemplo, com relação às políticas de demarcação de terras indígenas. Enquanto setores da economia verde defendem a importância dessa política para a conservação da biodiversidade, o agronegócio se opõe à pauta e, inclusive, tem a seu favor Carlos Fávaro, atual Ministro da Agricultura. De acordo com o próprio ministro, todas as entidades de classe representativas do agronegócio foram recebidas em seu Ministério. Ele também refuta as ocupações de terras improdutivas organizadas pelo MST.

 

O setor também é combatente quanto a questões de regulamentação dos defensivos agrícolas. Durante o Congresso Andav 2023, Ingor Plöger, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), defendeu que legislações como o Green Deal, estabelecida pela Europa, não são adequadas ao clima brasileiro, uma vez que, no Brasil, é possível fazer a colheita de até três safras ao ano, o que demanda maior quantidade de agrotóxicos, enquanto na Europa o clima permite a colheita de apenas uma safra anual.

 

Outra contradição entre setores do próprio governo está no novo PAC, que financiará a reforma e a abertura de 11 mil km de estradas vicinais, priorizando áreas com baixo desempenho no Índice de Vulnerabilidade de Transporte e alta produtividade agropecuária. Isso acende um alerta para o Programa de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, pois 75% do desmatamento no bioma ocorre em eixos ao redor de rodovias.

 

Uma estratégia ambiciosa, mas um plano incompleto

 

É notável a quantidade de iniciativas e os avanços que se propõem fazer, no intuito de transformar a economia brasileira rumo à sustentabilidade nos próximos anos. Para executá-las, o Brasil tem movimentado peças em quatro segmentos principais: (i) sociedade brasileira – incluindo a participação da sociedade civil na tomada de decisão; (ii) cenário econômico nacional – com o envolvimento do setor privado nas discussões do desenvolvimento sustentável; (iii) região sul-americana – ao passo que liderou a Cúpula ensejando cooperação regional; e (iv) cooperação internacional bi e multilateral para financiamento de ações na região amazônica. 

 

Contudo, se o Brasil almeja liderar o processo de transição econômica sustentável, algumas questões críticas devem ser levadas de forma séria e contundente pelo Governo Federal. A Cúpula da Amazônia terminou com resultados muito aquém do esperado – e necessários – para conter o desmatamento na Amazônia e o garimpo ilegal. A Declaração Presidencial, texto final da conferência, contém 113 objetivos e princípios transversais, porém metas comuns e concretas ficaram de fora, como a meta de zerar o desmatamento para todas as nações amazônicas e a proibição de exploração de combustíveis fósseis na região. 

 

Além disso, a Cúpula foi alvo de diversas críticas em relação à participação ativa da sociedade civil. Isso porque a Cúpula ignorou as contribuições dos Diálogos Amazônicos, a primeira etapa da Cúpula dedicada a discussões com a sociedade civil. As propostas da sociedade civil, especialmente dos povos originários, foram oriundas das mesas-redondas, plenárias, painéis e demais atividades planejadas pelo evento e foram sistematizadas em seis relatórios e entregues aos presidentes antes do início da Cúpula. 

 

Além de a Declaração Presidencial não refletir os debates feitos nos Diálogos, os relatórios enviados à reunião presidencial não tiveram suas conclusões incorporadas à Declaração. Para a Articulação dos Povos do Brasil (APIB), a Declaração foi frustrante e reivindica metas concretas para a demarcação de terras indígenas. Entre as reivindicações, a Apib destaca a necessidade de os Estados terem (i) ações definidas para o ponto de não retorno da Amazônia (termo usado por especialistas para se referir ao ponto em que a floresta perde sua capacidade de se autorregenerar), (ii) demarcação de terras indígenas, a titulação de territórios quilombolas e a criação de unidades de conservação, além de (iii) ações de fiscalização e proteção territorial, bem como de (iv) políticas de promoção da sustentabilidade dos territórios.

 

Certamente é muito positivo perceber que o debate saiu apenas do campo de atuação do MMA e vem se ampliando para diversas esferas do governo, além de ser muito importante a participação de amplos setores em direção à uma agenda sustentável. No entanto, a falta de um plano estratégico concreto, que estabeleça diretrizes e metas voltadas à adoção da economia verde, gera dúvida quanto à efetividade e fiscalização das medidas adotadas.

 

Adicionalmente, a atuação do governo em favor de medidas de ampliação do emprego de combustíveis fósseis – pela extração ou pelo uso – amplia as dúvidas sobre o quão sustentável será de fato essa transição econômica. Resta esperar por medidas mais concatenadas e abertamente discutidas com a sociedade. Talvez com a superação de impasses criados pelo período bolsonarista o país possa avançar a passos mais firmes rumo a uma transição sustentável.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *