Evo Morales vs Luis Arce: a disputa interna no MAS

19 de outubro de 2023

 

Por Ana Beatriz Aquino, Audrey Andrade Gomes, Gustavo Mendes de Almeida e Henrique Mario de Souza (Imagem: Pixabay)

 

No mês passado, a Bolívia presenciou a ruptura de um dos partidos políticos mais importantes para o movimento progressista na América Latina. Com um importante histórico de luta e resistência contra as medidas imperialistas e neoliberais que assombram o território, o Movimiento al Socialismo (MAS) vive profundas transformações e deixa um futuro incerto para o país.

 

No início de outubro, ocorreu o congresso do Movimiento al Socialismo (MAS), no departamento de Cochabamba, e um dos temas em destaque era a definição do candidato que representará o partido na próxima eleição, em 2025. Alegando falta de representatividade de movimentos sociais, o atual presidente, Luis Arce, decidiu não comparecer ao encontro e, para isso, recebeu apoio da ala “arcista” do partido. Essa conduta parece indicar uma tentativa de esvaziar a conferência em que Evo Morales e seus apoiadores defenderiam a candidatura do ex-presidente. Em resposta, decidiu-se pela expulsão de Luís Arce do partido, bem como uma modificação no estatuto do MAS que proíbe a candidatura de militantes que possuem menos de 10 anos de partido, condição que limita a participação do atual presidente da Bolívia. 

 

Ao que tudo indica, essa decisão deverá ser judicializada pelos aliados de Arce, dependendo da aprovação do Tribunal Constitucional e do Tribunal Eleitoral da Bolívia para ter validade. Fato é que, acusações mútuas de corrupção e conivência com o narcotráfico, bem como vaidades pelo controle do partido e do país, podem colocar em xeque um dos poucos partidos progressistas da América Latina que resistiu à onda neoliberal que varreu o continente na última década. A instabilidade no MAS já era notável desde a última candidatura de Evo Morales, em 2016. O ex-presidente havia sido confrontado por integrantes do partido sobre a legitimidade de sua reeleição. Entre os oposicionistas estava David Choquehuanca, atual vice-presidente que, por conta de seu posicionamento, acabou sendo expulso do comando do Ministério das Relações Exteriores em 2017. Desde então, os dois não tem tido uma boa relação.

 

Com a queda do ex-presidente em 2019, integrantes da ala oposicionista do partido passaram a se organizar a fim de definir uma nova liderança representativa, que tivesse peso para ganhar as próximas eleições. Morales, mesmo exilado, fez questão de participar e influenciar as decisões sobre a chapa que estava sendo construída e se empenhou em colocar Luís Arce como representante, deixando à Choquehuanca o cargo de vice. Na análise de Fernando Molina, essa escolha preservaria o protagonismo de Evo e permitiria que, após o exílio, ele pudesse retornar e assumir, novamente, a presidência do país. Isso porque Luís Arce não tem o capital político que Choquehuanca tem. A popularidade do primeiro está associada ao sucesso dos governos de Evo Morales, enquanto o segundo tem uma base de apoio muito mais sólida.

 

A eleição de 2019 marcou um importante ponto de virada na política boliviana. Após treze anos no poder – constituindo-se como o presidente mais longevo da história da Bolívia -, Evo Morales foi reeleito pela terceira vez, em um pleito extremamente conturbado, conjugando a controversa candidatura de Morales, um Golpe de Estado e a ascensão da extrema-direita na Bolívia, fatores que culminaram com o exílio de Morales no México. 

 

A Constituição boliviana, promulgada em 2009 no primeiro governo Morales, prevê a reeleição após o primeiro mandato presidencial, que tem duração de cinco anos. Com base nisso, o então presidente concorreu e venceu as eleições de 2009 e 2014, e só pôde se candidatar novamente em 2019 por conta de uma decisão judicial de 2017, que ignorou um referendo realizado no ano anterior, no qual a população rejeitou a possibilidade de uma terceira reeleição. Este evento contribuiu para um acirramento das tensões políticas no país andino.

 

Com sua candidatura legalmente permitida, Evo Morales venceria o pleito boliviano de 2019 ainda no primeiro turno, atingindo 47% dos votos e ultrapassando os 40% necessários para uma vitória na primera vuelta, uma vez que seu principal adversário, o ex-presidente Carlos Meza, não conseguira atingir os 40% para forçar o segundo turno. No entanto, em uma articulação da extrema-direita boliviana, do exército e de organizações internacionais como a OEA, o pleito não seria reconhecido, e após uma onda de extrema violência na Bolívia, a cúpula do MAS deixaria o poder executivo e legislativo, abrindo o caminho para que Jeanine Áñez, líder da extrema-direita no senado, assumisse a presidência da Bolívia de maneira interina. Neste contexto, Evo Morales se exilou no México e, em um segundo momento, na Argentina, apoiando de longe a candidatura de Luis Arce, escolhido pelo MAS para representar o partido.

 

O período em que Evo Morales esteve na presidência da Bolívia foi marcado por importantes conquistas econômicas, sociais e culturais, além de solidificação da soberania boliviana perante seus recursos naturais, em um contexto no qual o MAS concretizou-se como uma importante força política no país. Luis Arce era o Ministro da economia à época, sendo responsável direto pelo crescimento médio de cerca de 5% por ano vivenciado pela Bolívia, credencial que fortaleceu sua figura e permitiu com que vencesse a eleição de 2020 em primeiro turno.

 

Desde o início do governo Arce ficou definido que Morales não estaria diretamente envolvido nas tratativas do executivo. Entretanto, não se esperava o gradual afastamento e, mais recentemente, a ruptura entre o atual presidente da Bolívia e o principal líder do partido. Ao longo dos últimos anos, Arce foi se configurando como uma figura mais moderada, menos conflitiva do que Evo Morales. Se era imaginado que Arce seria uma espécie de sucessor de Morales –  em uma dinâmica natural de renovação política -, o anúncio de Evo Morales de que concorrerá à presidência em 2025, bem como a expulsão de Luis Arce do MAS definida no último congresso do partido, demonstram que isso não acontecerá, e de que está em marcha um processo de fissura no âmago de uma das principais forças progressistas da América Latina. 

O governo de Evo Morales e MAS na Bolívia

Durante a maior parte da gestão de Evo Morales, Luis Arce ocupou a pasta econômica, tendo recebido reconhecimento pelo milagre econômico boliviano. Antes de assumir o cargo, o político atuava no Banco Central do país, além de ter lecionado em universidades como Harvard, Columbia e UBA (Universidad de Buenos Aires). Durante as eleições de 2020, que marcaram a volta do MAS ao poder, Arce foi eleito com 55,1% dos votos, um crescimento considerável em relação ao resultado de Morales em 2019, que recebeu 47,07% dos votos. Contudo, sua popularidade no país andino se encontra  em seu nível mais baixo: de acordo com uma pesquisa da empresa Diagnosis, a popularidade de Arce é de 37% – dez pontos a menos do que em 2022, quando atingiu seu melhor índice. Além da ascensão da extrema direita no país – que tem como principal líder Luis Fernando Camacho, governador de Santa Cruz preso por envolvimento no golpe que removeu Morales do governo – o atual presidente também enfrenta tensões dentro de seu próprio bloco político, que culminaram em sua expulsão do partido no início de outubro.

Em 2022, Arce enfrentou uma grave crise política após ter adiado o censo que deveria ter sido realizado naquele ano, para 2024 por conta de problemas técnicos. Para a oposição, essa movimentação buscava garantir mais assentos e recursos para o governo nas eleições, uma vez que o censo confirmaria o crescimento da região de Santa Cruz, e poderia acarretar em um número maior de cadeiras no congresso para essa região, que é a base da oposição. Já para o MAS, a realização de uma greve geral de 21 dias, marcada pela violência, constituiu uma nova tentativa da oposição de desestabilizar a gestão eleita. Na época, Arce e Morales se reaproximaram para solucionar o impasse.

As expectativas populares de que Arce poderia repetir os resultados econômicos observados durante a gestão de Evo foram frustradas por um cenário conturbado: além de ter assumido o governo em meio a pandemia de COVID-19, o presidente boliviano também enfrentou um contexto de grave crise política, após a conturbada queda de Evo Morales, a ascensão da extrema-direita em 2019 com o governo de Jeanine Áñez e a acelerada queda com sua prisão em 2021. Porém, as disputas internas no MAS constituem o maior obstáculo para sua reeleição e até mesmo para a permanência da esquerda no governo, tendo em vista que o racha entre Evo e Arce podem contribuir para o avanço da direita no país. 

O período de 1985 a 2002 na Bolívia foi marcado por uma transformação política significativa, à medida que o país buscava se redemocratizar. A realização de eleições regulares desempenhou um papel crucial na consolidação da democracia. Nesse contexto, as legendas tradicionais, como o Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR) e o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), desempenharam papéis fundamentais na configuração do sistema político boliviano, trazendo suas propostas e estratégias para o cenário político. No entanto, a polarização política, que se intensificou a partir de 2002, trouxe divisões profundas na sociedade boliviana, muitas vezes relacionadas a questões sociais e econômicas que moldaram as identidades políticas do país.

A emergência do Movimiento al Socialismo (MAS) na Bolívia representa um ponto de virada na história política do país. A jornada do MAS rumo à predominância política aconteceu em um cenário complexo e dinâmico no conturbado período da virada pro século XXI, que envolve diversos elementos que valem a pena serem explorados. Neste período, a economia boliviana enfrentava declínio, as desigualdades sociais cresciam e a política era minada pela corrupção e ineficácia.

O enfraquecimento das legendas tradicionais na Bolívia foi um ponto crucial que abriu espaço para a ascensão do MAS. A história política boliviana estava marcada pela influência duradoura das legendas tradicionais, mas à medida que o país passava por mudanças socioeconômicas e políticas, a autoridade desses partidos foi corroendo-se gradualmente. A implementação de políticas neoliberais de ajuste econômico, que eram acompanhadas de um enfraquecimento do movimento sindical, contribuiu para o desgaste dessa confiança.

Foi neste ambiente desafiador que o MAS surgiu, fundado em 1995. Liderado por figuras proeminentes, como Evo Morales e Felipe Quispe, o partido nasceu com uma missão clara: representar os interesses dos povos indígenas e dos setores historicamente marginalizados. Assim, enfatiza-se a nacionalização dos recursos naturais e uma abordagem econômica mais inclusiva, destinada a combater as crescentes desigualdades e o predomínio do neoliberalismo.

No cerne da ascensão do MAS, encontra-se o sucesso em mobilizar as bases sociais em torno de suas propostas e políticas. Programas de assistência social e o aumento do salário mínimo foram algumas das medidas que contribuíram para construir a crescente base de apoio popular. Essas políticas não apenas promoveram lealdade entre a população, mas também consolidaram a posição do MAS como uma força política que priorizava o bem-estar social. O partido emergiu como um farol de esperança para aqueles há muito negligenciados pela elite política boliviana, particularmente os povos indígenas (que representam 62% da população do país). 

Em pouco tempo, o partido emergiu como uma força política influente e, eventualmente, a principal força política na Bolívia. Essa ascensão pode ser atribuída a uma série de fatores estratégicos e políticas astutas que moldaram sua trajetória. O MAS adotou uma abordagem pragmática e estratégica para alcançar seus objetivos. Isso envolveu a formação de uma ampla e diversificada coalizão de apoio, que incluía camponeses, sindicatos, movimentos sociais e comunidades indígenas. A habilidade do MAS em unir esses grupos sob uma bandeira comum demonstrou a sua capacidade de consolidar e fortalecer sua base de poder.

O partido abraçou, também, uma retórica anti-imperialista e nacionalista, que representou os interesses de uma parte significativa da população boliviana. A promessa de nacionalização de recursos naturais, em especial o gás e o petróleo, desempenhou um papel central na conquista do apoio popular. A liderança carismática de Evo Morales desempenhou um papel fundamental na ascensão do MAS. Sua origem indígena, história como líder sindical e sua capacidade de articular as aspirações populares o tornaram uma figura emblemática para muitos bolivianos. Sua habilidade em personificar a luta contra as elites políticas estabelecidas foi vital para o sucesso do partido.

A polarização política na Bolívia, que se intensificou a partir de 2002, desempenhou um papel significativo na consolidação do partido como a principal força política do país. Nesse período, a disputa entre o MAS e as legendas tradicionais tornou-se uma característica central da política boliviana. Essa polarização está enraizada nas questões sociais e econômicas que moldam as identidades políticas na Bolívia. Em 2005, o MAS assumiu o governo sob a presidência de Evo Morales e iniciou uma transformação política e econômica profunda. Sua liderança trouxe transformações significativas, enfrentando desigualdades e implementando políticas de nacionalização econômica, reforma agrária e assistência social

No entanto, vale ressaltar as limitações do projeto do MAS. A falta de diálogo com a oposição e a concentração de poder nas mãos do presidente foram desafios para a estabilidade política nacional e para a construção de uma democracia mais plural e inclusiva. A participação popular é, em suma, o legado fundamental na construção desse projeto. O legado de Morales e do projeto do MAS continuarão a moldar o cenário político boliviano.

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