Angola e Universal: entre o material e o simbólico

14 de junho de 2021

Por Pedro Lagosta, Enrique Lima, Magaly Alves de Moraes e Mohammed Nadir

Bolsonaro, a mercê da máquina evangélica, fará o que for preciso para agradar ao seu “guru” Edir Macedo. É justamente aqui que se deve entender a nomeação do Bispo Crivella, que não é diplomata, ao cargo de Embaixador do Brasil na África do Sul.

Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro de 2017 a 2020, é um dos principais nomes da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e acaba de ser convidado pelo presidente Jair Bolsonaro para assumir o cargo de Embaixador do Brasil na África do Sul. Trata-se de algo raro na história do Itamaraty, uma vez que Crivella não é diplomata de carreira. Qual é a razão desse convite anômalo? Qual a ligação com o escândalo da Igreja Universal em Angola? Em que medida esse convite reflete a promiscuidade entre a religião e a política num Estado laico como o Brasil? Finalmente, como o escândalo IURDgate compromete e traduz a inflexão da atual diplomacia brasileira no continente africano?

A chegada da IURD na África ocorreu em 1992, inicialmente na África do Sul, ao fim do regime de apartheid, após a libertação de Nelson Mandela, em 1990. Pouco depois a Igreja Universal começou sua expansão proselitista escolhendo Angola como novo território. País colonizado por Portugal que obteve sua independência em 1975, e que sofreu uma guerra civil sangrenta por 27 anos, a IURD detectou desde o início que se tratava de um gigante adormecido, dada as potencialidades em recursos naturais e minerais.  

Desse modo, a IURD aproveitou o timing adequado para consolidar seu estabelecimento numa Angola em plena transição política, social e constitucional, assim como numa promissora pujança econômica. Nesses espaços seriam edificados novos templos, tanto nas áreas centrais de Luanda, quanto nas regiões rurais, em uma agressiva estratégia de marketing, a partir de uma infraestrutura tecnicamente planejada e mobilizada para atrair fiéis e posteriormente acomodá-los com conforto em frequentes encontros. 

Tal como na África do Sul, em Angola a IURD utilizou a ideologia do renascimento como projeto de modernidade e emancipação para as camadas mais frágeis da população. Nesse sentido o papel social da IURD, maquiado com o referencial ideal do Brasil miscigenado, encontrou no cenário de Angola em transição as “boas-vindas” necessárias para o exercício de sua visão transnacional da fé modernizada.  

IURD e Bolsonaro no Brasil

A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) é o maior grupo neopentecostal do Brasil, fundada em 1977, em São Paulo, por Edir Macedo. De acordo com o censo de 2010, a IURD possui mais de seis mil templos, 12 mil pastores e 1 milhão e oitocentos fiéis com sedes locais por todo o país. Além da forte presença como instituição religiosa, a IURD é dona de diversos meios de comunicação, como a Rede Aleluia de rádio, a TV Universal e o jornal Folha Universal, além de gravadoras e editoras. A Record TV, segunda maior emissora de televisão no Brasil foi adquirida por Edir Macedo em 1989, e é utilizada de forma indireta para conquistar novos fiéis e aumentar a influência religiosa e política da Igreja Universal. A maior expressão do poder político do grupo se dá pelo partido Republicanos, fortemente associado à Igreja Universal. Um de seus líderes, o atual presidente do partido, Marcos Pereira, é um dos bispos da igreja. Sua representação política também se expressa na bancada evangélica no Congresso: a IURD é o segundo maior grupo dentro da bancada, que defende pautas de interesse dos líderes evangélicos.

Esse empoderamento político ganhou maior dimensão com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder. Em termos simbólicos, tanto a conversão ao neopentecostalismo e o batizado do presidente no templo de Salomão pelas mãos de Edir Macedo, que se tornou uma espécie de “guia espiritual” do presidente, reflete o assalto final da IURD sobre o panorama político do país. 

Os últimos acontecimentos do caso IURD Angola

As tensões entre a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e sua filial na Angola ganharam novos episódios. Ao longo do mês de maio, sob acusações dos líderes religiosos angolanos de mau gerenciamento e crimes fiscais, diversos bispos brasileiros foram deportados do país. A situação foi se tornando mais crítica depois de uma sequência de conflitos sem resolução desde 2019, resultando na separação angolana dos líderes brasileiros. 

Edir Macedo (proprietário da IURD) declarou perseguição religiosa, política e xenofobia na deportação dos missionários brasileiros. Os pastores e bispos brasileiros que ainda se encontravam em Angola estavam em situação ilegal, sem a renovação dos vistos de trabalho devido ao tensionamento na IURD, o que tornou a deportação um processo legal e dentro das conformidades das leis internacionais. 

Em meio a investigações e deportações, o alto escalão da IURD no Brasil aponta para a inação do governo de Jair Bolsonaro perante o caso. A instituição ameaçou até mesmo um rompimento, como uma tentativa de pressionar por mais ações do presidente brasileiro em prol da IURD em Angola. Com isso, foram realizadas reuniões no Itamaraty com o Ministro Carlos França, assegurando total apoio e assistência aos compatriotas ligados à Igreja em Angola. Não somente isso: tanto o presidente como o ex-ministro Ernesto Araújo defenderam publicamente a Igreja, após a pressão sofrida pela bancada evangélica. 

Com o desenrolar das investigações conduzidas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e a SIC (polícia federal angolana), Edir Macedo e os demais líderes estarão em um cerco ainda mais apertado, provavelmente recorrendo ao governo de Bolsonaro para amenizar a situação. Apesar da IURD não ser um ator político oficial do governo brasileiro, as tensões causadas pelas práticas da igreja evangélica em Angola têm consequências nas relações bilaterais dos dois países.

No meio disso, o governo Bolsonaro encontra-se refém da IURD, algo que pode comprometer o acordo cordial entre o presidente e seu “guia espiritual” Edir Macedo. A prova disso é que Renato Cardoso, genro de Edir Macedo, questionou publicamente a ausência de autoridades brasileiras para a resolução do caso e a passividade diante da situação. Estando a mercê da máquina evangélica, Bolsonaro fará o que for preciso para agradar ao seu “guru” Edir Macedo. É justamente aqui que se deve entender a nomeação do Bispo Crivella que não é diplomata, ao cargo de Embaixador do Brasil na África do Sul, como uma das decisões erráticas do governo Jair Bolsonaro em termos diplomáticos.  

Relações Brasil Angola: o caso IURD e seus desdobramentos

Não há dúvida que a relação umbilical que foi se constituindo entre o presidente Jair Bolsonaro e a Igreja Universal do Reino do Deus-Brasil, bem como a relação do presidente com Edir Macedo, passa hoje por seu maior desafio. De um lado o governo tem pouca margem de manobra para interceder junto ao governo de Angola, e, por outro, a IURD continua a pressionar o inquilino do Palácio do Planalto para cumprir seu pacto com a IURD. Enquanto isso, as relações do Brasil e o gigante africano podem vir a sofrer as consequências de uma IURD decadente aos olhos dos angolanos. Quais as probabilidades desse caso? 

Ainda que a deportação forçada dos pastores brasileiros ligados à IURD Angola seja apresentada como uma questão meramente burocrática, ligada à falta de renovação dos vistos de permanência no país africano, isso não deve escamotear que o caso tenha contornos mais profundos, e uma espécie de mal-estar diplomático não deve ser descartado. 

Não há informação se nos bastidores houve intervenção do Planalto junto às autoridades angolanas, e se essa tentativa tenha sido frustrada. As movimentações da bancada evangélica junto ao novo ministro Carlos França demonstram e dão a entender que o caso tem repercussões diplomáticas. É que além da aparente falta de documentação de permanência dos pastores evangélicos brasileiros que atuam em Angola, existe um golpe que os pastores angolanos pregaram à IURD Brasil em Angola, que atingiu todo o patrimônio colossal que a IURD possui no país. Trata-se de bilhões de reais. 

E se acrescentamos a frieza diplomática do governo Bolsonaro para com o continente africano, aniquilando todo o patrimônio diplomático do governo do ex-presidente Lula, podemos perceber que se trate de fato não apenas de um simples embaraço diplomático entre o Brasil e Angola, mas sim do fracasso de toda uma política externa que virou as costas ao continente irmão, muito sob uma índole racista. 

Até agora vimos que o governo Bolsonaro, além de marginalizar qualquer oportunidade de maior inserção internacional e optar por uma espécie de isolacionismo sem precedente, tendo mantido uma relação de vassalagem com o ex-presidente Donald Trump, optou também por marginalizar o pluralismo da sociedade brasileira, nomeando apenas ministros brancos. 

Uma das matrizes elementares da diplomacia é o simbolismo e, nesse sentido, ao ignorar a África, não ter nenhum ministro negro e não efetuar nenhuma visita de Estado à África, o governo Bolsonaro fez com que o caso da IURD em Angola seja a gota d’água que reflete o divórcio do atual governo com todo o legado diplomático de décadas de árduo trabalho no Itamaraty.

Texto publicado originalmente na coluna do OPEB no Brasil de Fato em 11 de junho de 2021.

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