Lacunas da política externa brasileira e a pandemia na África

                              Por Flávio Francisco, Kethelyn Santos e Marianna Alves

A partir do governo Michel Temer, o Brasil vem paulatinamente se afastando diplomaticamente do continente africano, fechando várias embaixadas estabelecidas na gestão Lula da Silva. A dinâmica se acentua na administração Bolsonaro, com a ausência de qualquer plano de cooperação com os países da região. Ações articuladas na área da saúde deixaram de existir. Apesar das diferenças nacionais, os Estados africanos buscam respostas conjuntas e institucionais para lidar com a pandemia

Desde o governo de Dilma Roussef, o Brasil tem passado por um processo de desengajamento com a África. Nos anos do presidente Luiz Inácio da Silva, a política externa foi marcada por uma reaproximação com o continente africano, em um momento em que governo brasileiro começou a articular uma série de iniciativas de uma agenda que reservava um espaço estratégico para os parceiros do continente.

A partir de 2016 José Serra, Ministro das Relações Exteriores do governo do presidente Michel Temer, iniciou o planejamento do fechamento de embaixadas na África e no Caribe e a realocação dos respectivos funcionários. Aloisio Nunes, que substituiu Serra, apesar de acusar constantemente os petistas de administrarem a política externa a partir de uma perspectiva ideológica, alegou que o motivo para o fechamento era o ajuste de recursos e não necessariamente uma reorientação para agenda do país com os africanos.

Em 2019, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, entre declarações controversas e protocolares, o país foi aprofundando o seu distanciamento em relação ao continente, abrindo mão de qualquer plano ambicioso para os africanos. No final do ano, o Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo visitou Cabo Verde, Senegal, Nigéria e Angola, para a assinatura de acordos bilaterais na área do comércio e cooperação, prometendo impulsionar a relação entre brasileiros e africanos. Araújo também reforçou a importância de acordos na área de segurança, citando os esforços para combater o crime organizado, o terrorismo e o narcotráfico.

Em 2020, entretanto, o primeiro movimento do Itamaraty, foi o de fechar sete embaixadas na África e no Caribe. No continente africano, as representações brasileiras nas cidades de Freetown (Serra Leoa) e Monróvia (Libéria) foram encerradas e tiveram seus serviços deslocados para a embaixada do Brasil em Acra (Gana).

No caso do Caribe, as embaixadas em Granada, Dominica, São Cristóvão e Névis, São Vicente e Granadinas, Antígua e Barbuda e Barbados foram fechadas. Todas haviam sido criadas durante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Distanciamento na saúde

O distanciamento também pode ser verificado em ações na área da saúde, já que durante o período em que o Brasil tinha uma agenda estratégica para a África, os programas de cooperação técnica em educação e saúde estiveram na linha de frente. A exportação de políticas públicas, como o combate ao HIV e à Malária, foi tratada como um trunfo dos brasileiros no continente.

No atual contexto de pandemia da Covid-19, entretanto, o Brasil tem comprometido a sua imagem de formulador de programas sociais para países da periferia do sistema internacional. Essa tendência tem se reforçado com os comentários hostis do presidente Jair Bolsonaro à Organização Mundial de Saúde, assim como a tendência negacionista na condução do combate ao vírus. Ainda que o continente africano apresente também práticas que ignoram a profundidade da pandemia, a grande maioria dos países, a partir de uma variedade de ações, organizam os seus recursos em meio a precariedade e demonstram engajamentos em níveis nacionais e regionais.

Conforme a Covid-19 avança no continente africano, a região procura respostas conjuntas e institucionais para lidar com a pandemia. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças da África (CDC) estabeleceu a Força-Tarefa para o Novo Coronavírus da África a AFCOR, lançada em 22 de fevereiro, durante uma reunião emergencial dos ministros de saúde africanos, em Addis Abeba. Esta Força-Tarefa busca apoiar a cooperação e liderança africana fortalecendo a capacidade técnica, aprimorando decisões políticas e coordenando a detecção e o controle nas fronteiras. A AFCOR conta com cinco grupos de trabalho sendo eles: vigilância fronteiriça; prevenção e controle de infecção em unidades de saúde; manejo clínico de pessoas com infecção grave por Covid-19; diagnóstico laboratorial, comunicação de risco e envolvimento da comunidade. Os grupos têm participação e representantes dos Estados membros, da OMS e de outros especialistas e parceiros no assunto.

Além de contribuir com a CDC, o Escritório Regional da OMS para a África (AFRO) atua com os 47 Estados membros desde o início do surto, apoiando governos com o fornecimento de milhares de kits de testes da Covid-19 aos países e o treinamento de profissionais de saúde e fortalecimento da vigilância nas comunidades. Como resultado, atualmente 44 países africanos membros da OMS podem testar o Covid-19 em contraste com dois países que podiam fazê-lo no início do surto. A organização também trabalha com uma rede de especialistas para coordenar os esforços regionais, dentre eles a Equipe de Apoio à Gestão de Incidentes (IMST) que tem como base, o fortalecimento e apoio técnico no tratamento de doenças. Argélia, República Democrática do Congo, Sudão do Sul e Zimbábue foram alguns dos países que receberam treinamentos e gerenciamentos de dados.

Medidas rigorosas

A África do Sul, uma das economias mais importantes do continente, está entre os países que tomaram as medidas mais rigorosas. O presidente Cyril Ramaphosa anunciou rapidamente o lockdown, baniu viagens para outros países, obrigou a aplicação de testes sobre os cidadãos que estavam em países com alta incidência do vírus e proibiu qualquer reunião com mais de cem pessoas. Assim como em outros países mais pobres, as autoridades sofrem pressão para que as atividades econômicas sejam retomadas e possibilitem a sobrevivência dos cidadãos sul-africanos. O consenso que havia sido construído por Ramaphosa no início da pandemia perdeu força a partir do momento em que a Aliança Democrática, que representa a oposição no país, e os grupo privados aderiram ao discurso de ineficiência do lockdown, ainda que 70 por cento dos sul-africanos apoiem as medidas tomadas pelo governo.

No Quênia, país com o maior número de casos na região leste do continente, o rigor das autoridades encontra resistência devido às práticas violentas para manter a população em quarentena.

Retórica negacionista

A retórica negacionista e nacionalista à Covid-19, característica das estratégias de enfrentamento da doença assumidas por Donald Trump e Jair Bolsonaro também faz parte da realidade do continente africano. Essa tendência se traduz no posicionamento do presidente da Tanzânia, John Pombe Magufuli, que após introduzir medidas preventivas tardiamente, contribuindo para a disseminação do vírus no país, optou por um discurso negacionista e conspiratório estrategicamente como uma cortina de fumaça à crise causada pelo vírus, bem como à falta de investimento em bens necessários para o combate e prevenção da doença. Recentemente em um pronunciamento pela TV, o presidente, que semanas antes havia anunciado três dias de orações nacionais e pedido aos tanzanianos que derrotassem a Covid-19 por meio delas, anunciou que os kits de testes de coronavírus importados eram fraudulentos, afirmando  que eles obtiveram resultados positivos em amostras colhidas em frutas e animais, o que significa que os testes estariam atestando falso-positivo.

Já em Madagascar o que há é uma estratégia de endosso de um produto de valor incerto, análoga ao culto à cloroquina protagonizado por Bolsonaro e Trump. Segundo o presidente Andry Rajoelina, um remédio herbal poderia prevenir e curar a doença. O remédio, que já teria curado duas pessoas segundo o presidente, foi nomeado como Covid-Organics e é feito a partir da Artemísia, uma planta com eficácia comprovada contra a malária, bem como outras ervas indígenas. Por se tratar de um remédio com base na medicina tradicional africana, foi recebido com muito entusiasmo tanto pela população quanto por diversos governantes, incluindo Magufuli que chegou a pedir um carregamento de avião do produto. O remédio, que tem sido exportado para outros países do continente a baixo custo, gerou uma espécie de patriotismo e empoderamento do continente, bastante utilizado retoricamente para se contrapor às críticas ao produto, que não possui evidências suficientes que atestem a sua eficácia. Rajoelina classificou o pedido da Organização Mundial da Saúde por testes rigorosos como uma condescendência dos Europeus em relação a África, atestando que se a cura fosse descoberta na Europa não geraria tanto ceticismo.

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