A polarização política doméstica e eventos externos ligados aos EUA

21 de setembro de 2021

Por Flávio Rocha, Tarcizio Melo, Julia Lamberti, Lucas Souza, Renan Ferreira e Diego Jatobá
(Foto: Andressa Anholete/El País)

Em meio à crise do governo Bolsonaro, setores militares seguem pregando golpe e veem ameaças comunistas em cada esquina. Em paralelo a isso, persiste a preocupante apropriação do aparato de espionagem interna por parte de setores extremistas da direita.

Militares e política doméstica

Apesar do presidente, Jair Bolsonaro, estimular os militares de seu governo – além dos adeptos de seu projeto de poder – a se manifestarem publicamente com objetivo de evocar a imagem disseminada de patriotismo e de compromisso do exército com o chamado bem público, as pesquisas de popularidade  demonstram que a reputação da instituição vem deteriorando-se junto a opinião pública. As ressalvas a respeito da atuação dos militares aumentam conforme a atuação das forças armadas se desdobra para além dos quadros funcionais da administração pública e passa a envolver lobby e acordos políticos na gestão da pandemia.

Nesse sentido, os desdobramentos da CPI da COVID, no Senado Federal, trazem luz a questões que vão além da atuação negacionista do presidente da República. A proteção que os militares possuem de suas instituições – as quais terminam por obscurecer indagações acerca dos desvios de conduta de seus membros – vai sofrendo pequenas cisões de imagem a cada novo depoimento que envolve e incrimina membros de seus quadros que são ativos dentro do governo Bolsonaro. Na prática, a CPI expõe o modo como os militares administram a máquina pública e como o estilo deles começa a ser percebido e avaliado em uma sociedade democrática e predominantemente civil.

Os militares não se sentiam obrigados a prestar contas para a sociedade e para o sistema político acerca da sua atuação na administração pública federal. Ocorre que, atualmente, observa-se que ministros como o atual Ministro da Defesa, General Braga Netto e o ex-ministro da Saúde, General Eduardo Pazuello, passaram a frequentar os corredores do Senado para se submeterem aos questionamentos do controle civil representativo. Entretanto, este fato tornou-se motivo de atritos e ameaças veladas por parte da cúpula militar e do Presidente ao ponto de emitirem discursos abertos quanto a uma possível necessidade  de intervenção militar

Militares e adesão ao conspiracionismo 

No governo Bolsonaro é comum militares das Forças Armadas (FFAA) e das polícias – especialmente da reserva – produzirem declarações e textos em favor do presidente. Muitas vezes, reproduzem as críticas do chefe do executivo a outros poderes e/ou adversários políticos, bem como as ameaças ao regime democrático. Exemplos dessa conduta foram particularmente numerosos no mês de agosto.

O site  ultraconservador de notícias militares, Defesanet, publicou diversos artigos do General (da reserva) Pinto Silva, analisandoas Tentativas Comunistas para Tomada do Poder no Brasil com base nos escritos do pensador italiano Gramsci”. Grosso modo, o general defende que a ‘esquerda’ tem um plano de inspiração gramsciana para tomada do poder no Brasil – tese difundida entre os militares e a extrema direita, inclusive através do livro ‘A Revolução Gramscista no Ocidente’,  publicado pela Editora do Exército (Bibliex), cujas ideias são resumidas em outro texto do portal intitulado Considerações sobre a Estratégia Revolucionária de Gramsci. A preocupação de Pinto Silva com as eleições de 2022 é patente. Em um de seus textos, ele escreve: “Como disse Fidel Castro, fundador com Lula do Foro de São Paulo: ‘Vamos recuperar na América Latina tudo que perdemos no Leste Europeu.’ Daí a importância extraordinária da eleição de 2022: A vitória do “bloco de esquerda”, vai ecoar inevitavelmente em todos os cantos da América Latina”. E conclui dizendo que: “O Brasil tem que saber o que quer, e o que não quer para o bem do seu povo e tudo será resultado das escolhas feitas pelos eleitores brasileiros”.

Outro militar cujos textos são publicados no Defesanet, é o Coronel (da reserva) Gelio Fregapani que publicou um artigo com o título ‘No return point’. Atacando frontalmente o Supremo Tribunal Federal (STF), deputados e senadores, ele sugeriu a destituição da Corte pelas armas, além de insinuar que pode não haver alternativa a uma Ditadura Militar (que, em suas palavras, seria breve), que o legislativo não aceite esse ato, uma vez que, ‘não há ponto de retorno’ para o impasse entre judiciário e o executivo. Fregapani coloca: “Naturalmente que os aficionados das ditaduras comunistas se levantarão em defesa da ‘democracia’ bem como alguns mais, cada um com seus motivos particulares, mas serão abafados pela maioria, quer por convicção quer para manter seus mandatos mas, se o Congresso não aceitar [a destituição do STF pela força] teremos novamente um período “militar” o qual procurará ser curto, a menos que nova guerrilha o obrigue a permanecer por mais tempo”.

O STF também foi alvo de críticas do General (da reserva) Maynard Santa Rosa, ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE). Ao jornal Crusoé, Santa Rosa disse que falta equilíbrio entre os poderes e também tratou do risco de ruptura institucional, termo eufemístico usado pelos militares para designar Golpe de Estado (e, ao mesmo tempo, negando-o): “Não estou falando em golpe. Mas de intervenção para retomar o equilíbrio institucional”, diz. Sobre o papel das FAs na ‘ruptura’, o General afirma: “(…) Forças Armadas serão obrigadas a agir. Nenhum dos integrantes do Alto Comando que eu conheço tem o menor interesse nisso. Pelo contrário, esse assunto é empurrado com a barriga. Mas, se ocorrer um impasse de fato, não tem saída”. Isto é, caberia aos militares, restabelecer o que concebem como ordem. Ele também critica o presidente, o qual qualifica como ‘agitador’, mas concorda com a pauta de falta de transparência nas eleições. Ao fim da entrevista o ex-ministro isenta o Exército de responsabilidade sobre o desastre da gestão Pazuello: “O ministro (Eduardo) Pazuello, casualmente, é um general que foi ministro. A instituição não foi consultada. Se fosse consultada, tenho certeza de que não concordaria”. 

É notório e preocupante a adesão dos militares às pautas de Bolsonaro, o alinhamento é tal que não é injusto questionar: Existe diferenciação entre o que pensa a caserna e o pensamento qualificado como Bolsonarismo?

Pós – 7 de Setembro: fracasso ou recuo estratégico?

Diante da provável derrota nas eleições presidenciais de 2022, Bolsonaro entra no caminho da radicalização e apronta seu ataque na direção das instituições de Estado, como é o caso do STF (Superior Tribunal Federal) e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Ainda que, entre seus seguidores e até em discursos velados do próprio, existam ataques ao Congresso e ao Senado, é para com as instituições do judiciário que se concentram as ameaças de uma eventual atuação por parte do governo. As manifestações que ocorreram no último dia 7 de setembro são um exemplo disso, as quais em seu auge, o presidente discursou que não acataria as decisões judiciais do Ministro do Supremo, Alexandre de Moraes, o qual é responsável pelo inquérito das fake news – inquérito aberto pelo STF com o propósito de investigar a disseminação articulada e sistêmica de notícias falsas e de ameaças contra os membros da Suprema Corte e seus familiares – que resultou em diversas prisões de aliados do governo.

Em um cenário no qual não houvesse apoio militar às pretensões presidenciais, talvez, os protestos seriam marcados apenas pelo discurso de uma minoria extremada e da reação de um governo em derrocada. Porém, não foram somente os civis e membros governistas que chamaram as manifestações para um ultimato: houve militares que incentivaram o ato ao longo do mês de agosto. Isto é, o presidente radicaliza e tenta cooptar os militares para uma aventura autoritária. Embora não haja um comum acordo por parte dos militares em sustentar uma eventual supressão da democracia, ainda existe parte substancial de generais que estão prontos para embarcar no caminho da radicalização.

Por outro lado, existem outras linhas de interpretação desse momento que colocam o extremismo retórico do presidente Bolsonaro como uma demonstração de fragilidade e fraqueza de sua governabilidade ao tentar utilizar-se de determinados militares radicais buscando demonstrar adesão de toda a corporação ao seu projeto. O objetivo, ao menos no curto prazo, seria o de desviar a atenção e criar dificuldades para as investigações sobre esquemas de corrupção que envolvem seu governo e família. De certo modo, após as manifestações não refletirem o tamanho ideal esperado pelo Planalto, no último dia 9 de setembro, o presidente moderou seu discurso agressivo ao divulgar uma carta intitulada “Declaração à Nação”, em que recua, aparentemente, de sua escalada autoritária. Com efeito, pode se fazer juízo de que o presidente não obteve o apoio militar necessário rumo a um golpe de Estado; ou seja, mesmo que o governo e a cúpula do exército ainda estejam coexistindo na administração federal, estes não embarcariam facilmente a qualquer empreitada autoritária, pois não é só de governo e de um sustentáculo armado composto pelos militares das Forças Armadas que se faz um país.

Diante disso, deve-se atentar para os novos desdobramentos da participação dos militares no governo e de como os parlamentares e as instituições de direito irão reagir diante das ameaças de quebra da ordem democrática por parte de determinados componentes das FAs – será uma aventura passageira ou um objetivo maior de demarcar território? 

Ainda restam pouco mais de um ano da presidência Bolsonaro para observar como atuarão os militares “fiadores” do governo. Além, é claro, de ser necessário também a observação de como será a resistência de outras forças envolvidas no cenário atual de atritos entre militares e civis.

Militares – Política externa e política de defesa

Militares, Democracia e EUA  

Após a visita de delegação dos Estados Unidos, composta pelo Conselheiro de Segurança Nacional e o Assessor Especial do presidente estadunidense, Jake Sullivan e Juan González, entre outros nomes, e seu encontro com o presidente Jair Bolsonaro no início do mês passado, as atenções dos norte-americanos se voltaram para a democracia brasileira, que virou foco de preocupação. Dentro dos assuntos debatidos, chama atenção a interpretação estadunidense de que não há risco de os militares embarcarem em uma possível tentativa de golpe articulado pela presidência. 

Não é de hoje o alinhamento dos militares brasileiros com os interesses estadunidenses, sendo possível enxergar uma relação que independe do próprio governo e até mesmo da posição indigesta de Bolsonaro. Ou seja, a parceria se mantém apesar de todos os acontecimentos. Assim, não é de se espantar que os EUA vejam as Forças Armadas Brasileiras para além do daquilo que aparece rotineiramente na imprensa, e contam, ainda, com o interesse dos próprios militares brasileiros nesse estreitamento dessa relação, o qual é visto como muito benéfico para seus objetivos. Porém, dentro dos EUA, há quem diga que os militares  devem se manter fora da política para evitar ruídos sobre a volta da ditadura.  No depoimento de uma fonte do governo Biden citada pelos jornalistas Vicente Nunes e Rosana Hessel, os militares brasileiros não são atores políticos e devem manter-se longe desse tipo de atuação.

Aparato de inteligência e espionagem política interna

O Deputado Federal, Marcelo Freixo, do Partido Socialista Brasileiro (PSB), alegou que sofreu espionagem, por parte das forças armadas, durante as discussões do projeto de lei que modificava o sistema de aposentadoria dos militares. A notícia divulgada pela revista, Sociedade Militar, no mês de agosto, aponta que houve diversos relatórios de inteligência, que avaliavam a opinião pública em relação ao projeto, além de outros relatórios que procuravam averiguar os envolvidos nas discussões, e entre eles o próprio Deputado do Rio de Janeiro. Os informes de inteligência indicam que Freixo era “um forte influenciador de massas radicais no twitter”, portanto, um problema para aprovação do projeto.

Trata-se de mais um capítulo no uso dos serviços de inteligências por razões questionáveis e que, por sua vez, não pode ser considerado como um acontecimento de exceção à regra, dado o caso do vazamento da atuação da ABIN na Operação Satiagraha em 2004. Porém, atualmente, existem questionamentos a respeito do seu uso fora do habitual, uma vez que o seu controle  foi  apropriado por militares ativos na gestão do atual presidente.

Os serviços de inteligência também retornaram aos holofotes quando o vereador da cidade do Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro (filho do presidente e que tem sido envolvido em toda a sorte de ações questionáveis, apontadas pelos inquéritos das fake news e pela CPI da Covid)  demonstrou interesse em criar sua “Abin paralelacom o objetivo de atuar contra possíveis desafetos políticos do presidente Bolsonaro. Na prática, o vereador acabou por revelar seu interesse na utilização do spyware Pegasus, fabricado pela empresa israelense NSO. 

A atuação do chamado “filho 02”,  gerou desconforto entre os militares. Entretanto, mesmo com o episódio os mesmos demonstraram interesse na ideia de um software espião no sentido de expandir o conceito de monitoramento. A partir desse contexto, é que se deve considerar questões de vigilância e espionagem por parte da ABIN.

A ABIN, desde a sua fundação, passa por dilemas de identidade devido a sua origem no antigo SNI (Sistema Nacional de Informação), o qual se caracterizou como um poderoso instrumento de espionagem política doméstica durante a ditadura militar. A ressignificação dos serviços de inteligência passou pela criação do SISBIN (Sistema Brasileiro de Inteligência), inicialmente sob o controle da ABIN. Atualmente, o sistema encontra-se controlado por um colegiado de órgãos – entre agências e ministérios. Em tese, tal supervisão acaba por favorecer o controle civil do aparato de inteligência, porém, ao analisar profundamente, nota-se o aparelhamento e a instrumentalização, por parte dos militares, da instituição com o fim de espionar a sociedade, como foi caso envolvendo o Deputado Marcelo Freixo.

A própria ABIN passa por apropriação dos setores militares em virtude de sua subordinação ao GSI, Gabinete de Segurança Institucional, antiga Casa Militar. Este, com status de Ministério, sempre esteve sob controle militar, o que gerou frequentes  conflitos entre civis e militares da ABIN e setores civis da agência que reivindicavam maior aproximação com a Presidência ou subordinação a órgãos civis. Sem o pleito atendido, a ABIN passou a ser plenamente subordinada aos militares na Era Bolsonaro e o GSI aumentou o seu poder na atual gestão.

Paralelo a isso, iniciativas do Governo Bolsonaro têm favorecido a criação de bases unificadas de acesso a informações pelos órgãos públicos. Como resultado, os serviços de inteligência obtiveram um maior acesso aos dados da população, destaque para o  Cadastro Base do Cidadão, um generoso database que daria ao governo a possibilidade de cruzar diversas informações dos cidadãos que vão desde dados fiscais,  até dados de veículos automotores e ligações com institutos de pesquisas como é o caso do CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) . As declarações oficiais têm indicado que os relatórios de inteligência servem para combater organizações criminosas, mas existem rumores, nos bastidores de Brasília, que apontam no sentido de seu uso para espionagem de desafetos políticos. “Coincidentemente”,  antes de ser monitorado, o deputado do PSB havia questionado a chamada “Abin paralela”.

Apesar da aura de sigilo que envolve a ABIN e outros serviços de inteligência, o controle dessa atividade tem no Congresso Nacional o principal instrumento de controle externo através da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência. De fato, o controle existe, porém,  na realidade, a comissão tem pouco atuado, muito por desconhecerem o que seja a atividade de inteligência e, também, pela frágil legislação a respeito do assunto que delimita o que é e quem pode de fato atuar como órgão de inteligência na administração pública federal. No final, a expansão do papel dos militares na administração pública favorece rumores e suspeitas do que de fato é a atividade de inteligência e como tal atividade tem o seu lugar em um Estado Democrático de Direito.

Militares expressam temores sobre a cibersegurança e o setor de satélites espaciais

Em paralelo as questões envolvendo aparato de inteligência, o tópico de cibersegurança tem despertado preocupação entre os militares. Essa questão foi levantada com o interesse de cinco empresas de tecnologia que buscam oferecer a internet via satélite no Brasil, que estão sendo analisados pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). As empresas SpaceX, Kepler, OneWeb, Swarm e Lightspeed ofereceram pedidos de licença, e caso aprovados, devem lançar pelo menos 4.800 satélites de baixa altitude no solo brasileiro, o que preocupa as Forças Armadas. Só a empresa de Elon Musk, a SpaceX, busca lançar 4.400 satélites a partir dos investimentos de 30 bilhões de dólares na Starlink –  que opera em sua versão beta em outros países. A preocupação se dá, primeiramente, pela baixa altitude dos equipamentos, a qual poderia interferir nos lançamentos de foguetes e satélites da Base de Alcântara, no Maranhão, comandada pela Agência Espacial Brasileira (AEB), que anunciou em 2020 o foco no mercado de constelações e pequenos satélites. Além disso, a AEB preocupa-se também com a possibilidade da efetuação de ações intrusivas clandestinas em diversos meios de comunicação com fins ilegais, como a interferência de emissões de Rádio e TV e a geração de dados artificiais e manipulados. Além disso, há o temor de que os satélites da SpaceX interfiram no satélite geoestacionário brasileiro SGDV. O equipamento foi lançado em 2017 e é usado para a segurança nacional.

O tema de cibersegurança também foi levantado na Reunião dos Altos Representantes do BRICS Responsáveis pela Segurança Nacional, em que o Brasil foi representado pelo General Augusto Heleno,  Ministro de Estado e Chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Na reunião, os representantes acordaram em fortalecer os esforços conjuntos para aumentar a cooperação por meio do compartilhamento de informações e intercâmbio de melhores práticas, combate aos crimes cibernéticos e capacitação. Também foram debatidos tópicos como: o Plano de Ação Antiterrorismo, que visa o fortalecimento de mecanismos de cooperação existentes no BRICS, incluindo o uso de internet por grupos terroristas; o crescimento da produção e do tráfico de drogas ilegais na região, definindo um aumento de cooperação nesse tópico, e a ampliação da cooperação no setor de saúde em vista dos desafios da COVID-19, e o cenário político atual global.

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